Home FilmesCríticas Crítica | Anatomia de uma Queda

Crítica | Anatomia de uma Queda

A subjetividade da realidade.

por Fernando Campos
17,3K views

A diretora de Anatomia de uma Queda, Justine Triet, expôs durante um dos eventos de divulgação do filme que ela vê tribunais como uma espécie de ficção. “Vejo o tribunal como um lugar onde nossas vidas são ficcionalizadas, onde uma história, uma narrativa, é colocada em nossa vida. Todos ali estão contando uma história, todos estão criando uma narrativa, e tudo está muito distante da verdade”. Mesmo não gostando quando realizadores explicam demais suas obras, a fala serve como uma entrada precisa para o universo do filme, onde a linha entre fato e ficção se desfaz. Uma das obras-primas de 2023, estamos diante de um longa desafiador, no melhor sentido da expressão, apresentando uma narrativa que questiona a própria natureza da verdade e apresenta a complexidade da subjetividade do olhar.

O enredo da obra se concentra em torno de Sandra Voyter (Sandra Hüller), uma escritora alemã acusada de assassinar seu marido francês, Samuel Maleski (Samuel Theis). O corpo de Samuel é encontrado sob circunstâncias misteriosas, desencadeando um julgamento tumultuado e repleto de incertezas. A defesa alega que o marido caiu da janela do sótão e bateu a cabeça, enquanto a acusação sustenta que Sandra o golpeou com um objeto e o empurrou da sacada. Mas o que torna o caso ainda mais incerto é a participação do filho do casal, Daniel Maleski (Milo Machado Graner), garoto cego e única testemunha do incidente.

Triet consegue pegar um drama de tribunal, com estrutura bem tradicional, e transformar isso em um dos mais interessantes espelhos da realidade contemporânea, época do pós-verdade e da artificialidade das informações. Em uma atualidade em que todos possuem uma ferramenta para contar histórias em mãos, estamos todos contando uma história para outras pessoas e projetando uma imagem, assim como qualquer autor. Durante o julgamento da trama, cada personagem tece sua própria versão dos eventos e projeta a história mais conveniente para si, sendo um trabalho brilhante da autora em apresentar um universo tão crível ao mesmo tempo que soa artificial. É um mérito imenso que os roteiristas, Triet e Arthur Harari, consigam pegar situação tão absurda e agridoce e transformem isso em uma história que intercala com precisão drama, curiosidade, realidade e mistério. O trabalho dos dois não faz apenas o público questionar o que é verdadeiramente real, mas promove uma reflexão profunda sobre como percebemos e moldamos nossa própria realidade. 

Mas essa dualidade fascinante do texto só chega até nós porque o elenco encarna isso com a alma. Sandra Hüller e Milo Machado Graner, no papel de mãe e filho, se destacam explorando delicadeza, fúria e profundidade. Hüller, conhecida por sua habilidade em transmitir complexidades emocionais com sutileza, como em Toni Erdmann, traz uma camada de autenticidade e vulnerabilidade ao filme. Seu domínio na expressão de emoções conflitantes se entrelaça habilmente com a narrativa, permitindo aos espectadores mergulhar nas nuances da história. Por outro lado, Milo Machado Graner, com uma expressão no olhar magnética, balanceia perfeitamente entre o sutil e o intenso, mostrando o dilema terrível de ter que decidir acreditar em quem ama cegamente ou abraçar o que parece mais real. Destaque final para Swann Arlaud, que surge muito charmoso em tela e aos poucos revela interesses além do profissional naquele caso, como muitas vezes na vida.

Seguindo a linha multifacetada da obra, a fotografia imerge na exploração da perspectiva individual da realidade. A variedade nas escolhas fotográficas, auxiliada pela montagem, é notável: os enquadramentos intercalam a paisagem montanhosa ou o ambiente do tribunal com detalhes íntimos e close-ups, dando justamente a sensação de camadas sendo desfeitas enquanto assistimos. Perceba como quanto mais o filme se desenrola, mais a câmera se aproxima dos personagens. Já o jogo entre luz e sombra é  eficaz, criando contrastes que refletem as oscilações emocionais dos personagens, enquanto a paleta de cores, optando por tons mais frios, serve como um barômetro da melancolia de todo o universo, como se todos eternamente esperassem uma satisfação que jamais chega, especialmente no arco de Samuel. Há ainda uma variação de lentes, indo de grandes-angulares a óticas normais e passando por ares televisivos, convidando o espectador a pensar como a abordagem midiática geral esconde ou simula uma realidade que quem assiste pode interpretar, mas jamais compreender por completo.

Somente essa abordagem já seria suficiente para resultar em uma obra profunda, mas Triet vai além. Durante o julgamento, a promotoria questiona Sandra sobre similaridades entre sua obra e sua vida, visto que ela é escritora, chegando ao ponto de comentarem sobre um livro escrito por ela em que a protagonista assassina o marido. Especialmente no segundo ato, o longa circula esse questionamento ao pensar na protagonista como autora. A questão que fica conosco é: se um artista imagina um cenário, de onde isso surgiu? A arte é uma extensão real do realizador ou apenas um exercício de linguagem? Se uma obra for uma camada dele, como devemos olhar para eles por imaginarem realidades tão agressivas? 

Pode parecer que Anatomia de uma Queda levanta uma série de questões e no fim não decide por nada, mas é na incerteza que encontramos as respostas. Se a realidade é tão relativa, e cada vez mais artificial, temos o poder de construir nossa própria realidade. Sandra criticava Samuel por se vitimizar constantemente e jamais ser o protagonista da própria vida. Independente da crença de cada um, estamos todos vivendo uma história, e hoje em dia podemos expor esse conto, se essa narrativa será escrita por nós ou por influência de outras pessoas, é escolha de cada personagem.

Anatomia de uma Queda (Anatomie D’une Chute) – França, 2023
Direção: Justine Triet
Roteiro: Justine Triet, Arthur Harari
Elenco: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner, Samuel Theis, Jehnny Beth, Saadia Bentaïeb, Camille Rutherford, Anne Rotger, Sophie Fillières
Duração: 151 minutos​

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais