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Crítica | Angola Janga – Uma História de Palmares

Resistência histórica.

por Luiz Santiago
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O feito de Marcelo D´salete em Angola Janga é verdadeiramente notável. Sua proposta é narrar um recorte da luta e resistência de ex-escravizados que fugiram de seus grilhões e algozes e formaram um espaço de habitação, convivência e continuação de luta contra a estrutura social que os transformaram em “peças de cor” — uma estrutura formada por portugueses e seus descendentes, por holandeses (entre 1630 e 1654) e cercada por regras e apoio da coroa portuguesa e de praticamente toda a hierarquia da igreja católica no Brasil, com poucas exceções individuais. O subtítulo da obra é ideal para aquilo que o autor propõe, logo, quando falamos de “uma história de Palmares“, temos a noção imediata e assumida de que estamos lidando com um caminho específico de abordagem que não se pretende único ou definitivo. E mais interessante ainda: numa perspectiva de ficção histórica, pensada para uma aventura em quadrinhos.

A narrativa de D´salete é plural. Ao longo dos capítulos, vemos diálogos entre personagens, exploração de paisagens como componente lírico, presença de atos religiosos de pessoas negras, observações poéticas sobre a natureza, ações de extrema violência contra os escravizadas e demonstração de diversos aspectos da dinâmica colonial, numa esfera que vai do Governador da Capitania de Pernambuco, aos senhores de engenho, capatazes, milicianos, padres, indígenas e o infame bandeirante Domingos Jorge Velho mais o seu contingente armado. O texto, no entanto, não obedece a uma linearidade, o que o torna bastante confuso algumas vezes, principalmente nos flashbacks e em algumas mudanças de perspectiva da própria história, como os blocos de Ganga Zumba e Zumbi, por exemplo.

Muitos desses problemas de andamento poderiam ser evitados com componentes visuais mais incisivos, entretanto, o autor preferiu manter o mesmo padrão de diagramação para toda a trama, com um padrão na divisão de quadros, com um mesmo uso de letras e estilo artístico. No todo, são ótimas escolhas. Pontualmente, nas passagens citadas, deixam a história um pouco difícil de acompanhar, até porque não estamos diante de um enredo onde só existem conversas ou narração. A grandiosidade de elementos disponíveis em Angola Janga, tanto engrandecem a obra, quanto exigiam uma melhor demarcação estética para essas transições. Contudo, tais dificuldades de andamento jamais tiram do quadrinho a sua grande importância. O autor está claramente preocupado em mostrar diversos caminhos históricos e, o melhor de tudo, trabalhando com trechos de cartas, petições, diários ou análises posteriores a respeito dos quilombos e seus habitantes.

Ao final do volume, um glossário, um relato pessoal, uma cronologia de eventos, mapas e uma notável bibliografia fecham com chave de ouro a concepção do projeto. Em Angola Janga, o leitor tem a oportunidade de acompanhar sonhos sendo destruídos e vidas sendo ceifadas por uma ordem político-econômica que visava o lucro através do trabalho não pago, e para isso, transformava seres humanos de uma etnia específica em simples “fôlegos vivos” ou “máquinas de trabalho“; pura mercadoria. Os caminhos ficcionais que permeiam a narrativa, aqui, são bem pensados e não interferem na compreensão dos fatos e nem inventam situações anacrônicas ou que contradigam o que temos de documentos, práticas e narrativas que sobreviveram ao tempo. Trata-se de uma aventura de julgo, horror e tristeza; mas também de luta, esperança e irmandade. E para a nossa tristeza, trata-se também de mais um alerta sobre como feridas abertas lá no século XVII ainda não foram completamente fechadas… ou geraram outras, adaptadas aos “novos tempos“, onde o homem e a mulher preta sentem no corpo e na mente, pelas leis não cumpridas, pelos olhares, falas, “piadas e brincadeiras” os ecos estruturais de sua própria existência diaspórica num país racista como o Brasil.

Angola Janga – Uma História de Palmares (Brasil, 2017)
Roteiro: Marcelo D´salete
Arte: Marcelo D´salete
Capa: Marcelo D´salete
Editora original: Veneta
434 páginas

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