Eco pode, de relance, parecer o suprassumo da tentativa de usar as minorias pouco representadas no audiovisual como massa de manobra, já que a série é protagonizada por uma mulher com dupla deficiência (surdez e perna amputada) que, ainda por cima, é uma nativa americana da Nação Choctaw, quase como se a produção quisesse, açodadamente, matar diversos coelhos como uma cajadada só. Dá aquela impressão de que a personagem foi criada para isso somente, quando a maior prova de que Maya Lopez poderia sim ser uma pessoa real é justamente sua intérprete, Alaqua Cox, que é exatamente tudo isso que eu listei, ou seja, mulher, nativa americana (só que da Nação Menominee), surda e amputada. Em outras palavras, independente de qualquer outra consideração provavelmente vinda de alguém que não compartilha nenhuma característica com Lopez ou Cox, representação é sim importante.
No entanto, sendo bem sincero, esperava que a produtora só levantasse essas bandeiras por levantar, para fazer aquele marketing barato, sem realmente mergulhar nas características formativas da personagem, ou seja, transformando-a em mais uma personagem qualquer cuja identidade e deficiências pouco realmente importassem. Mais ainda, sua introdução na minissérie Gavião Arqueiro foi, para mim, muito desinteressante, um dos poucos pontos fracos dela, aliás, já que nado na contramão geral em relação ao que achei da obra que passou o bastão super heroico – ou melhor, a flecha super heroica – de Clint Barton para Kate Bishop. Não ajudou em nada que o primeiro episódio da primeira série sob o selo Marvel Spotlight, em tese feito para indicar que ela é razoavelmente independente de interconexões, não só deixou claro que ela é sim muito dependente de conhecimento prévio de diversos acontecimentos, como foi tacanho em sua forma de reunir e reapresentar as informações e ainda fazer aquele retcon safado que “revela” que Maya Lopez e o Demolidor já se encontraram antes em uma sequência de pancadaria pouco inspirada e que, vale dizer, é a única em que o super-herói cego da Marvel aparece na série.
Qual não foi minha surpresa, portanto, quando, já no final do referido primeiro episódio, com a personagem retornando para sua cidade natal (Tamaha, Oklahoma) cinco meses depois de suspostamente matar Wilson Fisk, o Rei do Crime (Vincent D’Onofrio), a narrativa começou a sofrer mutações constantes que estabeleceram o foco da série: desenvolver Maya Lopez com toda a propriedade em uma história de origem que conscientemente sacrifica a ação que tipicamente se espera de obras do gênero em prol de uma abordagem que realmente abraça as características da protagonista, distanciando-a da “típica série de super-herói”. Isso fica evidente já nos primeiros segundos do episódio inaugural, em uma alongada e estranhíssima sequência que lida com a ancestralidade e mitologia dos Choctaw e da família de Lopez que, nos episódios seguintes, são desenvolvidas de diferentes maneiras com o objetivo de levar a protagonista a deparar-se com seu legado e a fazer as pazes com suas origens depois de passar 20 anos em Nova York longe de suas raízes.
Sua surdez é, igualmente, da essência da série. Nada de saídas fáceis para os diálogos que são, todos eles, travados em língua de sinais, mesmo que, mais para a frente, uma particularmente interessante tecnologia facilitadora seja utilizada em um contexto específico e lógico. Segurar episódio atrás de episódio sem diálogos da maneira tradicional não é nada trivial, mas Eco consegue normalizar essa situação em tese desconfortável para quem, como eu, não entende a sinalização, com razoável desenvoltura e sem atravancar o desenvolvimento da narrativa. Diria até mesmo que, quando chegamos lá pelo penúltimo episódio, tudo está funcionando tão bem nesse quesito que chega a fazer falta um pouco mais de tempo para determinadas linhas narrativas serem trabalhadas com mais calma, sem que a montagem tenha que substituir desenvolvimento com pequenos e convenientes saltos temporais que nem sempre funcionam a contento.
E, finalmente, o fato de Alaqua Cox ser amputada (diferente da personagem dos quadrinhos) foi inserido na narrativa como parte essencial dela, equalizando a perda da perna com a perda da mãe da protagonista e trabalhando essa deficiência não como um problema ou dificuldade, mas sim como um fato da vida, novamente normalizando uma situação que afeta tanta gente de maneiras diferentes. Fiquei feliz que a produção não sucumbiu à tentação de transformar a prótese de Lopez em alguma espécie de arma tecnológica ou coisa do gênero, amarrando-a, ao contrário, ao legado indígena da protagonista. Ou seja, a série consegue lidar exemplarmente não com uma ou com duas, mas sim com três situações incomuns no audiovisual em um pacote que de forma alguma parece forçado ou apenas “cumpridor de tabela”. Maya Lopez é a soma de suas dessemelhanças à norma e a personagem tão atabalhoadamente introduzida no Universo Cinematográfico Marvel ganha outro relevo aqui e estabelece-se, espero, como parte integral dessa “subdivisão” das ofertas do estúdio.
Mas isso não quer dizer que Eco é uma série sem problemas e sim, apenas, que esses problemas não estão localizados nas características peculiares da protagonista. Sua jornada pessoal de basicamente vilã para heroína (ou anti-heroína, como queiram), mesmo que com pouco tempo, é completa e crível. O que não é crível é o quanto ela representa de ameaça para Wilson Fisk, já que, com exceção de um ataque bem-sucedido a um trem do Rei do Crime, não vemos mais nada realmente sólido sobre os cinco meses em que, em tese, Maya Lopez tentou firmar-se no submundo. Muito ao contrário até, sua chegada em Tamaha parece até aleatória, com ela claramente em desvantagem e, mais ainda, sem nenhuma menção a ela ser sequer um “blip” no radar das organizações Fisk. Ou seja, ao preocupar-se em criar espaço para o legado de Lopez, os roteiros se esqueceram de criar situações que a tornassem uma inimiga valorosa para o Rei do Crime.
A própria presença física de Wilson Fisk em Tamaha é estranha demais. Não é nem um pouco natural ver o Rei do Crime no interior dos EUA, em uma cidadezinha que é quase um vilarejo, somente para atrair sua protegida para o Lado Sombrio da Força novamente. Tenho plena consciência de que, com apenas cinco episódios, Maomé tinha que vir até a montanha (ou seria o contrário aqui?), pois não havia tempo para tudo o que tinha que acontecer com Maya em Tamaha para, então, um embate final em Nova York, provavelmente com ela tendo que ir para lá para salvar sua família. A pouca minutagem, portanto, forçou a mão dessa artificialidade e os roteiros não souberam lidar muito bem com isso, fazendo de Fisk o proverbial elefante em uma loja de louças, completamente deslocado nessa nova ambientação.
Além disso, mesmo que as sequências de ação não sejam o foco da série – e isso é até refrescante, sendo sincero – as poucas que existem deveriam ser no mínimo acima da média. Infelizmente, porém, elas sequer chegam à média. E serei benevolente e nem chegarei próximo de exigir algo na linha do que vimos na ainda imbatível série do Demolidor do Netflix. Queria apenas algo próximo do que vimos em Gavião Arqueiro, ou seja, ação consistente e razoavelmente bem coreografada. Mas isso não acontece. Ou vemos sequências de pancadaria em que espancadores e espancados parecem ter receio de bater e apanhar, como é o caso do fraco entrevero entre Lopez e o Demolidor no primeiro episódio, ou vemos momentos em que a computação gráfica tem dificuldade de convencer, como é a sequência da sabotagem do trem. Entre uma coisa e outra, o que há são momentos que começam e acabam em um piscar de olhos e que, por isso, nem sequer deveriam ter sido inseridos na história.
E há uma enorme hesitação da produção em efetivamente fazer de Eco uma série mais, digamos, radical, aproximando-a da citada série do Netflix. Há um descompasso sensível no emprego da violência ou mesmo da intensidade das lutas. Sim, há uma ou duas cenas bem mais violentas do que o normal de séries do UCM, mas elas parecem claudicantes, como se tivessem sido esquecidas ali depois de um expurgo quase que completo delas por parte de um editor sob ordens de apagar tudo aquilo que crianças de mais de 12 anos não deveriam assistir. Não há nada pior do que ficar no meio termo, no fio da navalha entre um tipo de abordagem e outra e Eco faz justamente isso, seguindo seu caminho com receio de decepcionar quem não quer violência e também quem a quer, resultando em um problema para os dois lados dessa discussão. Basta pegar como exemplo, mais uma vez, a luta de Maya com o Demolidor, claramente inserida na série de qualquer jeito, para fazer as redes sociais comentarem. Trata-se de uma “anti-luta”. Nenhum golpe parece real. Nenhum malabarismo parece natural. Não há força, não há potência, não há engajamento dos dois em momento algum. É como dirigir um carro vistoso com freio puxado.
Eco merece aplausos pela excelente maneira como desenvolve sua protagonista, fazendo com que a história de seu povo e suas deficiências estejam realmente amarradas à personagem e à história como um todo. Nisso, não tenho reparos a fazer, muito ao contrário. No entanto, a série parece se perder em tom e na forma como Maya Lopez se insere no universo do Rei do Crime e do Demolidor, como se a equipe de roteiristas tivesse escrito duas séries, uma muito boa sobre a origem de Eco e outra muito ruim sobre os ecos de Eco (não deu para resistir…) no UCM. Se era para ser uma coisa ou outra, teria sido muito melhor se a produção tivesse focado em que Maya Lopez é, deixando o restante para algum momento no futuro.
Eco – 1ª Temporada (Echo – EUA, 09 de janeiro de 2024)
Direção: Sydney Freeland, Catriona McKenzie
Roteiro: Marion Dayre, Josh Feldman, Steven Paul Judd, Ken Kristensen, Ellen Morton, Chantelle M. Wells
Elenco: Alaqua Cox, Chaske Spencer, Tantoo Cardinal, Charlie Cox, Devery Jacobs, Zahn McClarnon, Cody Lightning, Graham Greene, Vincent D’Onofrio, Jeremy Renner
Duração: 209 min. (cinco episódios)