Home QuadrinhosOne-Shot Crítica | Gilles Hamesh, Detetive (Totalmente) Particular

Crítica | Gilles Hamesh, Detetive (Totalmente) Particular

Podre! Podre! Podre!

por Luiz Santiago
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Gente pudica, cheia de dedos, repleta de nojinho fácil e parte de um grupo social para o qual a “moral e os bons costumes” valem mais que tudo na existência: passem longe de Gilles Hamesh, Detetive (Totalmente) Particular, ou vocês nunca mais irão dormir na vida! Lançado originalmente na França, em 1995, o quadrinho foi pensado por Alejandro Jodorowsky como um contraponto ao lado legalmente correto, limpo e honesto da vida, mais precisamente, de uma vida ligada à investigação de crimes; a vida de um detetive. Mas é claro que a essência da HQ voa mais alto. O autor fala do lado sombrio e podre da humanidade, vivendo logo ali, a alguns traumas de distância, pronto para vir à tona e causar um grande estrago. Mas apesar dessa intenção macrocósmica da ideia geral, expondo uma excelente discussão que envolve áreas que vão da psicologia à antropologia, o foco de Jodorowsky é rigoroso. Ele não quer discursar sobre causas externas, “falar da vida e da alma em geral“. Ele só está interessado nesse mundinho sujo e tudo o que se entulha e fede nele. Apenas isso.

Michel Durand é o responsável pela arte dessa nojeira toda, e o conteúdo que ele precisava desenhar era de tal forma escabroso, que preferiu (sabiamente, segundo palavras do próprio Jodorowsky), assinar como Durandur. Lápis com finalização suja em nanquim; quadros amplamente preenchidos (poluídos) e exposição de tudo quando é fluído, partes do corpo (internas e externas) e podridão urbana somadas a uma grande violência são aspectos que visualizamos aqui; um visual propício para aquilo que o roteirista propõe. Gosto também do contraste que ele cria no capítulo final, quando Gilles percebe que está tudo muito diferente do que ele está acostumado e sai para investigar, encontrando um mundo que, para ele, parece um pesadelo. Se Jodorowsky termina o volume com um “contraste a uma história que deveria explorar a polaridade da essência humana e suas relações sociais, nos mais diversos espaços“, Durandur segue de perto esse ideal ao criar quadros limpos, traços simples nos desenhos, muito branco, com indicação de incidência de luz, e pontual relação de claro-escuro que fica muito bonita nas páginas.

Existe uma aproximação interessantíssima que o autor faz entre o protagonista e Gilgamesh, algo que podemos ver no nome do detetive e no trechos de Ele Que o Abismo viu: A Epopeia de Gilgámesh, que são utilizados entre os capítulos, servindo de separação entre as histórias. O que eu não esperava encontrar aqui, mas que faz todo sentido vindo de quem vem, é que a resolução para os casos está sempre na seara do sobrenatural. Todo o aspecto material da saga é realista, pautado pelo que eu interpreto como um exagero narrativo na exposição dos crimes (e não estou colocando isso como algo negativo, apenas como uma definição de abordagem), mas ao fim das investigações de Gilles Hamesh, o assassino principal ou a maneira como a problemática se ajusta sempre se mostram… de outro mundo. Eu achei estranho quando isso aconteceu no primeiro conto (com a camisa manchada de sangue), mas aceitei. Já no segundo, com o “monstro de esperma da lixeira”, não gostei: foi muito inferior àquilo que a própria trama (forte, horrenda e fascinante, ao mesmo tempo) nos mostrava. Quanto às manifestações finais (o Cristo haitiano de vudu e os anjos), penso que foram escolhas perfeitas e cujo aspecto sobrenatural fazem total sentido para a história, além de serem muito bem trabalhados até aparecerem.

Em Gilles Hamesh, Detetive (Totalmente) Particular, o pior lado do ser humano é confrontado por um investigador que também é uma representação do pior lado do ser humano. Essa junção de “faces hediondas” com pequenas nuances de diferença (afinal, Gilles é um “mocinho”, sob um aspecto absolutamente tortuoso desse mundo pestilento) gera no leitor a mais estranha e magnética das sensações. Embora não traga o mesmo nível de podridão, durante a leitura, eu tive alguns lampejos do volume inicial de Diomedes – A Trilogia do Acidente, mas o processo de investigação e a própria constituição de Gilles, como personagem, está em outra categoria, de uma baixeza pútrida ímpar. Este é um quadrinho para chocar, é verdade, mas não gratuitamente. Há um propósito de reflexão no exagero, e este é muito bem demonstrado na oposição dramática da derradeira trama. Esta é uma HQ que herda muita coisa da visão de Sade e Bataille para o corpo e o caminho que se faz dele entre a frieza da morte e a quentura do prazer. Uma história sobre uma realidade fétida, desprezível, mas inquestionavelmente nossa.

Gilles Hamesh, Detetive (Totalmente) Particular (Gilles Hamesh, privé – de tout) — França, 1995
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Arte: Durandur (Michel Durand)
Editora original: Les Humanoïdes Associés
No Brasil: Editora Veneta, 2022
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza
96 páginas

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