Em uma comparação rápida em razão das similaridades tanto em época de lançamento, quanto em tema, Maestro triunfa naquilo que Napoleão falha. Ridley Scott perdeu-se entre lidar com as conquistas bélicas do general francês transformado em imperador, e seu amor por Joséphine, mas Bradley Cooper, que produz, co-roteiriza, dirige e protagoniza a cinebiografia de Leonard Bernstein mostra absoluto foco e controle na história da relação do grande compositor e regente americano com Felicia Montealegre, que primeiro seria dirigida por Steven Spielberg e, depois, por Martin Scorsese, dois consagrados cineastas que, arrisco dizer, não entregariam o tipo de obra que acabou chegando primeiro nas telonas em circuito limitado de diversos países do mundo, incluindo o Brasil, para seguir para distribuição via Netflix. Cooper, apenas no segundo longa que dirige, cria uma obra-prima delicada, visual e sonoramente belíssima, com atuações irretocáveis dele e de Carey Mulligan, no papel da esposa de Bernstein.
Preciso esclarecer que, quando empreguei a classificação de “cinebiografia” no contexto da comparação com Napoleão, quis dizer que Maestro não é exatamente uma cinebiografia completa de Leonard Bernstein. Suas composições, apesar de formarem a trilha sonora do longa em uma escolha acertadíssima da produção, assim como a ascensão em sua carreira, estão em segundo plano, pois o filme é sobre sua vida com Felicia, seu grande amor, dentro de um contexto complexo em que sua bissexualidade, conhecida e aceita por ela, o leva a casos amorosos com outros homens enquanto casado com a atriz costarriquenha educada no Chile. Portanto, é necessário que o espectador que espera uma cinebiografia tradicional ajuste suas expectativas a uma obra que é, na verdade, um recorte específico da vida de Leonard Bernstein.
Não que elementos externos ao relacionamento dele com Felicia não sejam abordados. Ao contrário, eles informam a narrativa que começa com o grande momento de Bernstein regendo de último minuto e sem ensaios a Filarmônica de Nova York, em 1943, e nos leva a um passeio por todos os seus grandes momentos com elegantes saltos temporais, inclusive com a alteração da fotografia em preto e branco inicial para a colorida – com a razão de aspecto “quadrada” 1.33: 1 sendo alterada para a 1.85: 1 para emular as épocas, já que o filme é enquadrado como um flashback a partir de um Bernstein já idoso e ao piano, dando uma entrevista -, mas sempre a partir do ponto de vista da conexão dele com Felicia. Esse limitador narrativo é, na verdade, uma boa notícia, pois impede que o filme se perca em digressões e dá cor e forma às atuações de Cooper e Mulligan, o primeiro com uma excelente maquiagem que procura alterar o mínimo possível suas feições para não causar distrações.
Felicia, conforme o filme mostra, foi o norte, a âncora, o porto seguro de Leonard desde que os dois se conheceram em uma festa e começaram a namorar. Cooper faz questão de estabelecer equilíbrio de presença de tela entre ele e Mulligan (ela inclusive tem first billing, ou seja, seu nome aparece antes na lista do elenco), o que abre espaço para a atriz por vezes inclusive assumir de vez o protagonismo em sua inicialmente feliz, mas progressivamente mais torturada vida em que percebe que não é o centro de atenções amorosas do marido que passa a desrespeitá-la com seus casos cada vez mais abertos, perante tudo e todos. Leonard conduz sua vida sem nenhum tipo de regência e não percebe – ou demora a perceber – o quanto isso afeta sua amada esposa, inclusive tendo dificuldade de manifestar seus sentimentos por ela, apesar de Cooper e sua câmera fazerem de tudo para evidenciar esse fato com as imagens.
E essas imagens são absolutamente intoxicantes. Cooper cria um dos filmes mais visualmente elegantes e sofisticados dos últimos tempos que lembra muito o magnífico e detalhista trabalho do estilista Tom Ford quando ele muito raramente assume a direção de longas (Direito de Amar, Animais Noturnos). A direção de fotografia do versátil Matthew Libatique (Réquiem para um Sonho, Homem de Ferro, Nasce uma Estrela) usa um preto e branco de alto contraste para marcar o começo da vida profissional de Bernstein e seu relacionamento com Felicia, somente para, depois, trabalhar uma fotografia granulada com paleta de cores viva, que grita anos 70, para quando os problemas, ainda discretos, começam a aparecer. Por seu turno, o design de produção de Kevin Thompson é um primor, com direção de arte e figurino trabalhando em uníssono para capturar desde o espartano apartamento em que Bernstein inicialmente vive até o magnífico apartamento no famoso The Dakota (onde John Lennon morou e em cuja entrada ele seria assassinado) de janelões e pé direito altíssimo no Upper West Side, em Nova York, onde ele e Felicia tem um feroz embate verbal enquanto o famoso desfile do Dia de Ação de Graças passa ao fundo. Pode parecer exagero, mas o cuidado em cada composição visual parece entrar em uma saudável e franca competição por atenção com a trilha sonora escolhida a dedo a partir do repertório do próprio Bernstein, com um resultado hipnotizante.
Cooper faz, ainda, o uso de dois outros expedientes clássicos que são cada vez mais raros de se ver por aí, mesmo em produções mais autorais. O primeiro deles é o uso generoso de planos gerais mesmo quando a sequência é intimista, com diálogos entre a dupla protagonista. Isso cria, ao mesmo tempo, dispersão visual, que leva o espectador a estudar cada detalhe da tomada, assim como a impressão de que, apesar do mundo ao redor, aquele casal ali, distante de nós, mas próximo um do outro, é, também, o centro das devidas atenções. Além disso, o cineasta faz maravilhoso uso de sequências longas, sem cortes, não para que sua câmera faça malabarismos pelos cenários (quando ele assim o faz, como na estupenda sequência da regência de Ressurreição, de Mahler, na Catedral Ely, na Inglaterra, há um objetivo claro), mas sim para permitir que Cooper e Mulligan possam compor performances repletas de belíssimas nuances que revelam apenas com expressões ou com aquilo que não é dito, com as meias palavras, sem a afobação moderna por cortes e mais cortes.
Aliás, nuance é algo que não falta ao roteiro que Cooper co-escreveu com Josh Singer (Spotlight: Segredos Revelados, O Primeiro Homem, The Post: A Guerra Secreta), pois os diálogos parecem autênticos, vivos em relação às épocas retratadas e sem didatismos. Chega a ser um triunfo a forma como a bissexualidade de Bernstein é trabalhada desde o primeiro minuto apenas com imagens e não com explicações, justificativas, maneirismos, afetações ou qualquer outra artificialidade dessas que tendem a esvaziar a força do subtexto. Bernstein apenas é e ele precisa lidar com as consequências de suas ações tanto relacionadas com casos amorosos como com o trabalho, em relação ao seu casamento com Felicia. E o mesmo vale para sua religião. O fato de o personagem ser judeu está presente em cada fotograma da mesma maneira que sua bissexualidade, mas sem ganhar tratamento banal, mastigado e entregue para consumo geral juntamente com um gráfico para todo mundo entender as entrelinhas.
Maestro é uma sinfonia audiovisual da mais alta qualidade que Cooper rege com segurança e cuidado atrás e na frente das câmeras acompanhado de um trabalho de se aplaudir de pé por parte de Mulligan. Napoleão pode até ter chegado a ser imperador, mas quem realmente ganha uma régia e inesquecível cinebiografia na base do “atrás de todo grande homem, há sempre uma grande mulher”, em 2023, é mesmo Leonard Bernstein.
Maestro (Idem – EUA, 2023)
Direção: Bradley Cooper
Roteiro: Bradley Cooper, Josh Singer
Elenco: Carey Mulligan, Bradley Cooper, Matt Bomer, Maya Hawke, Sarah Silverman, Michael Urie, Brian Klugman, Gideon Glick, Sam Nivola, Miriam Shor, Alexa Swinton, Josh Hamilton, Zachary Booth, June Gable
Duração: 129 min.