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Crítica | Morte e Vida Severina (Auto de Natal Pernambucano), de João Cabral de Melo Neto

Uma das obras-primas do teatro e da literatura brasileira do século XX.

por Leonardo Campos
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Considerado como uma obra-prima da trajetória do escritor João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina é uma peça teatral construída com traços poéticos fortes, um jornada de beleza no quesito estético, mesmo diante de sua temática áspera: a miséria de um nordestino acometido pelos problemas de ordem social e geográfica, a pavimentar sua caminhada por uma existência sofrida, bastante reflexiva, dominada por dualidades de um território brasileiro estruturado por desigualdades gritantes. Integrante do painel de narrativas natalinas da literatura brasileira, o clássico em questão se associa com as empreitadas tristes deste período, distante o ideal de felicidade, compartilhamento de uma mesa farta, apesar de encontrar, em algumas passagens, pequenos instantes de solidariedade que fazem o protagonista Severino, descrente do valor da vida, repensar a sua busca por respostas que constantemente exaltam a morte como o destino ideal diante de tanto alijamento em sua existência de dificuldades extremas, mergulhada na desesperança, afinal, para todos os lados que encara, precisa enfrentar a falta de perspectivas.

Em sua caminhada, após se apresentar ao público, Severino sai dos confins do sertão nordestino em direção ao litoral. É o trajeto tradicional das narrativas de muitas histórias do romance de 30. Ao passo que atravessa, encontra diversos tipos nordestinos, pessoas que demonstram as suas experiência e proporcionam ao personagem uma visão geral sobre a sua própria vida. Um dos mais impactantes encontros é com os lavradores, chamados de irmãos das almas, responsáveis por carregar o corpo de um colega assassinado em conflitos latifundiários. De uma tristeza absoluta, e ainda carregado de uma atualidade aterrorizante, Morte e Vida Severina nos apresenta as ansiedades de Severino ao contemplar a seca do rio Capibaribe, enquanto continua a sua travessia testemunhando a morte de outro homem semelhante a ele, morto em circunstâncias semelhantes ao “outro Severino”, mencionado anteriormente.

Ao longo de sua passagem rumo ao litoral, Severino observa o ambiente esverdeado da Zona da Mata, um local com a cor que nos remete ao tom de esperança necessário para se tentar sobreviver em um contexto de grande desânimo. Apesar do tom mais vivo do espaço, a morte parece acompanha-lo sorrateiramente, pois outras vidas ceifadas são observadas com impacto pelo personagem. Ao chegar em Recife, resolve descansar diante de um muro, quando escuta o famoso diálogo entre dois coveiros, uma conversa sobre o destino dos retirantes que saem de suas regiões para tentar a vida ali e acabam morrendo. Angustiado, Severino decide se entregar ao que parece ser o seu destino: a morte. Para isso, resolve se atirar em dos rios que corta a cidade, finalizando as incertezas de sua existência tomada pelo tom amargo constante. É quando a magia natalina, de maneira sutil, domina a cena e o faz rever a sua decisão.

Ao se aproximar do rio, encontra um carpinteiro chamado José, um morador da região ribeirinha. Ele questiona ao personagem se aquela área seria propícia para o suicídio. O homem responde que sim, mas tenta convencer o protagonista a não se atirar e colocar um ponto final em sua vida. Severino, intrigado e decidido, questiona os motivos para aquele conselho. Diante de tanta dor e falta de perspectiva, aquela parece ser a melhor das iniciativas. A resposta, por sua vez, passa por um momento de interrupção. José, ao celebrar com os vizinhos e conhecidos a chegada de seu filho, recebe os presentes singelos e os conselhos das pessoas que integram aquela comunidade empobrecida, mas unida em prol da vida. Depois, num breve instante, responde ao questionamento de Severino: diz que não possui a resposta certa para aquilo, mas o nascimento do seu filho o ajuda a compreender a reafirmação da vida diante das trevas da morte.

Assim, a jornada se encerra. Sem definição para a escolha de Severino, terminamos a leitura com as decisões em aberto. Num caminhada de dor e miséria, o protagonista encontra algum acalento que o faz rever as suas decisões. É um breve sinal de esperança diante de um cenário desolador. Com rigor imagético, expressividade sintética de um poeta coeso, Morte e Vida Severina traz ao leitor uma entusiasmada construção poética inspirada nos versos curtos, ambientada no sertão pernambucano, tendo o período natalino como elemento tangencial da história que deflagra um dos problemas sociais mais graves do território brasileiro: a realidade da seca nordestina que ceifou muitas vidas na época e ainda é uma questão na pauta política contemporânea. Entre diálogos e monólogos, a peça delineia os sucessivos encontros do protagonista Severino com a morte, uma realidade insistente que o faz desacreditar nas potencialidades da vida. A chegada da criança ao final, simbolicamente associada ao nascimento de Cristo, traz um pouco de oxigenação diante das suas contradições, num dos trabalhos mais belos da produção literária e teatral brasileira do século XX, transformado em música, filme, dentre outros.

Morte e Vida Severina (Auto de Natal Pernambucano) — Brasil, 1955
Autor: João Cabral de Melo Neto
Editora: Alfaguara
Páginas: 112

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