Quando anunciado que Britney Spears iria lançar a sua autobiografia, todos esperavam uma publicação bombástica, com revelações chocantes e muita polêmica. A Mulher em Mim não chega a ser assim, pois muitas coisas que são reveladas pela cantora já tinham sido delineadas pela mídia jornalística e pelos documentários dedicados ao processo judicial travado contra o pai nos tribunais, desde que o movimento Free Britney ganhou força no mundo inteiro. Ainda assim, foi bastante angustiante acompanhar as suas revelações até o desfecho. Momentos de solidão, dor, aprisionamento e exploração definem o livro de 232 páginas, veiculado aqui no Brasil pela editora Buzz. Ao ler e organizar as ideias para trazer uma crítica sobre a longa jornada da artista, eu pensei em temporadas. Britney Spears, mulher milionária, marca de grande poder na cultura do espetáculo, após se tornar impossibilitada de exercer plenamente a sua cidadania diante do colapso registrado minuciosamente pelo olhar público desde o casamento de algumas horas com um amigo de infância, em Las Vegas, descreve em suas memórias uma série de acontecimentos impossíveis de não acionarem a mínima empatia por parte do leitor, em especial, quando destaca os seus traumas, algo que todos nós carregamos, de alguma maneira, não é mesmo? Quem vos escreve carrega várias e você que está lendo esta crítica deve ter as suas, e, ao passo que se permite ler uma publicação como esta da Britney Spears, se questiona o motivo para determinadas coisas acontecerem em nossas vidas, muitas delas, ocasionadas pelo “outro”, por suas intervenções negativas que marcam para sempre as nossas trajetórias.
Apesar de ter escrito um texto polêmico por aqui e ser considerado um equivocado por uma base de fãs gigante, não serei hipócrita em dizer que acho Britney Spears uma artista com grandes chances de ainda continuar sua trajetória. Era encantador acompanhar suas performances nos primeiros anos, a forma como dominava o palco e criava, junto aos seus contratados, músicas empolgantes. Ao passo que o cansaço, os excessos foram chegando, a cantora deixou a desejar, mas não porque quis, e sim por conta dos problemas oriundos do bojo familiar, das pressões midiáticas e de outras tantas circunstâncias que a destruíram. Se me perguntarem: Britney Spears ainda importa? Direi um sonoramente não. Enquanto artista, desde Circus, a cantora entregou apenas o que alegoricamente na alimentação chamamos de produtos processados. Glory é um caso extraordinário nesta caminhada, mas como a própria cantora revela em seu texto, era obrigada a fazer um monte de coisas pelas quais não se orgulha, pois não tinha sentimento algum embutido, levado como chamamos no popular de a “toque de caixa”. Com o excesso de medicações, algumas delas, forçadamente empurradas goela abaixo, como o caso do lítio, que a deixava sonolenta e fora de si, Britney foi se perdendo ao longo do tempo e transformada, no que ela também revela, em um robô, uma máquina de fazer dinheiro para o pai abusivo e, concomitantemente, para o resto da família aproveitadora, pessoas que hoje não fazem mais parte do seu ciclo cotidiano de vida.
Diante do exposto, vamos para as tais temporadas na qual dividi o livro?
A temporada envolvendo o seu pai é a mais longa de todo o livro, esticaria esta crítica por longínquas páginas, mas ao planejar o texto, a minha proposta foi ser sucinto, haja vista a explicitação do caso na mídia nos últimos anos, algo de conhecimento geral até mesmo para aqueles que não consomem Britney Spears enquanto entretenimento. Em sua infância e adolescência, a cantora teve que lidar com um pai muito duro não apenas com ela, mas com a sua mãe e seu irmão. Criado num regime praticamente militar, Jamie Spears não era apenas rigoroso, mas um homem grosseiro, fruto do seu tempo. Bebia muito, não conseguia se fixar em um trabalho, vivia agredindo verbalmente a matriarca da família, dentre outras situações tão corriqueiras nas trajetórias de muitas pessoas neste nosso mundo. Depois do auge da filha, Jamie não precisava mais se preocupar com finanças. Segundo a artista, ele a transformou numa máquina de fazer dinheiro, responsável por trazer sustento e tranquilidade para todos que gravitavam em torno de seu sucesso. Eram shows em excesso, turnês longas, poucas pausas e muita cobrança. Fenômeno mundial, Britney Spears não conseguia gozar dos privilégios de ser uma das mulheres mais famosas do planeta. Na verdade, vivia enclausurada e perseguida constantemente, onde quer que fosse, ainda no começo de sua jornada, numa época em que ela mesma não entendia tudo aquilo que acontecia em sua vida.
Ainda sobre a relação com o pai, depois da interdição, seguida da curatela, um processo que durou longos 13 anos, Jamie se intitulo Britney Spears. Ele disse: “eu sou Britney Spears agora”. Com isso, ditava tudo: com o que ela poderia ou não se alimentar, quais músicas estariam ou não em seus espetáculos, amigos que seriam visitados, dinheiro na conta para consumo básico, dentre tantas outras coisas. Foi internada forçadamente por diversas vezes, obrigada a frequentar reuniões do AA mesmo sem consumir uma gota de álcool e examinada em dinâmicas periódicas abusivas: a cantora denuncia que o seu pai era contraditório, pois se ela andava realmente tão desgastada e sem condições de assumir a sua própria vida, por quais motivos era colocada para trabalhar tanto? Por que tantos shows em Las Vegas? Qual a explicação para inserção em programas, entrevistas e outras participações sem que a artista tivesse o mínimo de desejo de realizar. A maneira como Britney Spears conta tudo isso nos faz lembrar filmes distópicos, haja vista a crueldade exercida não apenas pelo pai, o mentor de tudo isso, mas também da passividade agressiva de sua mãe e sua irmã. Independe de termos, caro leitor, dois lados em qualquer história, é realmente estranho contemplar uma mulher considerada no fundo do poço tendo que realizar tantas coisas laborais num espaço de tempo em que deveria estar afastada de tudo, cuidando de si para alcançar a libertação. Olhando com distanciamento, sem se contaminar com as costumeiras teorias conspiratórias dos fãs, é tudo muito paradoxal, estranho, o que permite ao livro de Britney Spears o status de relato imbuído de veracidade.
Ao longo da temporada Justin Timberlake, confirmamos o óbvio: as punições contra Britney Spears por ser mulher numa cultura misógina. Ela até menciona o discurso de Madonna na ocasião da premiação Billboard, sobre o preço pago por mulheres na indústria do entretenimento, enquanto os homens realizam atos abomináveis e ainda assim são tratados como descolados. Na época do namoro com o cantor, Britney estava completamente apaixonada, era muito jovem e imatura, por isso, precisou lidar com os desdobramentos da relação do rapaz, bem como a exposição midiática depois do término. Enquanto era tratada pela mídia como “vadia” nas diversas reportagens sobre o desfecho do namoro, o cantor gozava dos privilégios de um novo álbum, das regalias de ser tratado como um protegido, um ferido pela selvageria da moça demasiadamente sexual, num processo tortuoso que pode ser considerado como uma das bases para que a artista tenha adentrado pela zona sombria que a acompanhou ao longo dos anos seguintes. A ideia da cantora, exposta numa escrita delineada com um tom muito verdadeiro, não se passar por uma santa, ao contrário, em todas as menções ao Justin Timberlake, ela destaca o quão a sociedade, de maneira geral, foi tóxica ao tentar construir uma imagem péssima para a sua reputação, quando no final das contas os dois eram jovens demais para lidar com tanta coisa acontecendo de forma avassaladora em suas vidas. Um destes turbilhões foi o aborto que ela foi pressionada a fazer, pois Justin alegava não estar preparado para ser pai, no fundo, ele também uma vítima desta sociedade que cria garotos em redomas de masculinidade agressiva.
Na temporada apoio, Britney Spears é transparente em seus agradecimentos e aponta todas as pessoas que, diante de tantos momentos de fraqueza e dor, tornaram o seu cotidiano menos sufocante. Madonna foi um dos casos, esteve presente além dos palcos, acompanhando a cantora em seu apartamento para conversas e orientações sobre carreira, haja vista a similaridade do trabalho de ambas. Os atores Mel Gibson e Reese Whiterspoon, a sua assistente Felicia, dentre tantos outros de sua equipe. Ela detalha a maneira como estas pessoas, direta ou indiretamente, se tornaram indivíduos que a ajudaram ao longo de alguns de seus processos. Os fãs ganham menções especiais, em especial, pelas dinâmicas do movimento Free Britney, estruturado com base no estranhamento daqueles que acompanhavam a sua carreira. A mesma mídia que a destruiu, durante tanto tempo, se movimentou diante dos questionamentos desta movimentação da forte base de fãs da cantora. Mas, olhando pelo viés de um comunicólogo, não foi porque a cultura midiática se arrependeu do que fez anos antes ao destroçar o lado pessoal e profissional da cantora, mas porque a palavra-chave Britney Spears ainda é ouro, isto é, a sua história de dor rende muito, tanto dinheiro quanto audiência. Há, no entanto, muito paradoxo neste processo, afinal, o movimento dos jornais diante de seu caso acelerou processos.
Em termos editoriais, A Mulher em Mim é um livro atrativo. A sua versão em capa dura é pomposa, a diagramação é simples, mas elegante, num projeto que traz a tradução eficiente de Cristiane Maruyama. O único elemento considerado o “porém”, por sua vez, é o preço. Custando em torno de 100 reais na época de seu lançamento, a publicação impede que algumas pessoas tenham acesso ao material, pois além do texto em si, o livro não traz impressão especial ou os murais de fotografias coloridas para custar um valor tão alto, dando espaço para que a pirataria se manifeste, por mais sem ética que seja a leitura por estas vias. A foto de capa, também, poderia ser outra, algo que refletisse a Britney Spears mais atual, transformada pelos acontecimentos descritos ao longo da autobiografia. Mas, estes são pequenos detalhes, afinal, acho interessante, ao analisar livros, pensar também em seu suporte, não apenas no conteúdo em si. Inicialmente frágil, mas com uma escrita crescente ao passo que os fatos são narrados pela artista, eis um livro que nos traz angústia, empatia, bem como muitas reflexões, pois o que é descrito em cada linha está longe de ser fantasia, algo que acontece cotidianamente com tantas pessoas que gravitam em torno de nossa realidade. Eu mesmo, caros leitores, conheço várias, salvaguardadas as suas devidas proporções.
Que Britney Spears, a pessoa e a artista, se recuperem.
A Mulher em Mim (Woman in Me/Estados Unidos– 2023)
Autor: Britney Spears
Editora no Brasil: Buzz Editora
Tradução: Cristiane Maruyama
Páginas: 265