Um dos poucos bons filmes de ficção científica do cinema brasileiro, Abrigo Nuclear (1981) é uma ecodistopia dirigida por Roberto Pires, que reflete, dentre outros temas importantes, sobre a destruição das condições de vida na superfície do planeta. Após uma catástrofe do tipo “tragédia amplamente anunciada“, os humanos se depararam com a terrível combinação de resultados do capitalismo industrial predatório e inconsequente: problemas causados por acidentes nucleares e uso irresponsável do lixo dessas usinas, mais os já conhecidos problemas de poluição da atmosfera por combustíveis fósseis, e também do solo e das águas por diversos outros produtos químicos, dejetos, desmatamento, queimadas e destrutiva exploração de recursos naturais.
A vida em abrigos subterrâneos, nesta realidade, é a consequência de um aviso que não foi ouvido no passado. Depois de muitas gerações nesta situação, alguns indivíduos passam a cogitar com seria a existência na superfície, o que não encontra boa recepção na liderança local, a autoritária Avo (Conceição Senna). Realizado nos últimos anos da ditadura empresarial-militar no Brasil, Abrigo Nuclear espelha muito abertamente as questões de seu tempo, como a censura, a tortura, a administração ditatorial, a corrupção, a manipulação de dados e a ação de indivíduos ou grupos no poder para manterem as suas vantagens intactas. No aspecto político, é uma obra sobre a relação entre comandantes e comandados num ambiente de sobrevivência, onde ânsia pelo poder, ciência e tentativas de mudança se chocam o tempo inteiro.
O filme foi realizado de forma artesanal, e o diretor Roberto Pires chegou a vender muitos de seus bens, inclusive a casa, para finalizar a obra, já que a Embrafilme, naquele momento, tinha uma política lenta de liberação de recursos em etapas. No documentário Bahia SCI-FI (Petrus Pires, 2015) temos informações detalhadas dos bastidores dessa produção e todo o engenho que o diretor utilizou para construir os cenários, as máquinas e o aparato tecnológico que vemos na tela. A direção de arte e todo o desenho de produção de Abrigo Nuclear são realmente impressionantes, e conseguem esse status sem exageros, optando pela simplicidade e possibilidade das máquinas dessa realidade, com destaque para o carro, os meios de comunicação e as roupas que os técnicos utilizam para fazer vistorias na superfície.
Exceto pela participação especial de Norma Bengell, o elenco aqui é formado por atores amadores, o que confere à obra uma mistura de dramaturgia mais solta e leve (no lado positivo), e notadamente canastrona, no lado negativo, embora isso não atrapalhe sobremaneira a nossa experiência. A união dos habitantes do abrigo e a abertura para o conhecimento do passado abrem caminhos para a construção de um futuro melhor para os cidadãos desse mundo radioativo, e o roteiro explora essa passagem na forma de pensar através de uma revolta organizada pelos técnicos e controladores. O domínio da memória, do lazer e do acesso das pessoas aos documentos, fatos, modo de vida e ideias de outros tempos começam como um tabu e terminam como o primeiro degrau de uma escada de desenvolvimento civilizacional para essas pessoas. Na memória histórica, a raiz de um novo mundo é plantada, para que as gerações futuras não precisassem mais viver no abrigo nuclear e dominassem novamente a superfície. No argumento do diretor Roberto Pires, em parceria com Orlando Senna, apenas o conhecimento de um modo de vida, produção e ideias já vividas poderia gerar uma sociedade que entenderia que a continuação da espécie só seria possível caso optassem por um outro tipo de valor e modelo de sociedade.
Abrigo Nuclear (Brasil, 1981)
Direção: Roberto Pires
Roteiro: Roberto Pires, Orlando Senna
Elenco: Norma Begell, Sasso Alano, Bárbara Bittner, Roberto Pires, Ronny Pires, Sandra Valença, César Pires, Salatiel Beltrão, Antônio Fontana, Renato Lavigne, Nonato Freire, Marco Bahia, Leonel Nunes, Marília Araújo, Maria Teresa Soares, Freddy Ribeiro
Duração: 88 min.