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Crítica | Via Crucis, de Clarice Lispector

Um Natal fora de época e o estabelecimento do fantástico na jornada de subjetividade de Maria das Dores.

por Leonardo Campos
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Clarice Lispector é um dos nomes da literatura brasileira que dispensam grandes apresentações. Expoente da crônica e do conto, em Via Crucis, a escritora estabelece elementos do fantástico dentro de uma história potencialmente humana e, desta maneira, versa sobre diversas questões importantes sobre o lugar do feminino em nossa sociedade. Do ponto de vista de quem vos escreve, também, considero a saga de Maria das Dores uma narrativa destas que ilustram a temática natalina no âmbito da literatura, mas dentro de determinadas peculiaridades que serão panoramicamente destacadas ao longo desta breve reflexão. Publicado em 1974, o conto é parte integrante do livro A Via Crucis do Corpo, material envolto em polêmicas por ser considerado uma parte menor do conjunto da obra da autora. Por tratar de questões sobre sexualidade feminina e também ter sido encomendado, os contos que compõe a publicação não foram considerados pela própria escritora como uma contribuição grandiosa de sua escrita, algo debatido em suas biografias e por diversos estudos acadêmicos. Há, no entanto, em sua tessitura, as habituais temáticas filosóficas e existenciais comuns aos textos de Lispector. Tal como as 14 cenas da via crucis de Cristo, o livro que insere o conto analisado possui também 14 narrativas.

De leitura bastante fluida, algo que nem sempre é possível nos contos da escritora, haja vista a complexidade temática de muitas de suas composições literárias, Via Crucis nos traz a história de Maria das Dores, uma mulher que é casada, mas ainda é virgem. O seu marido, disfuncional sexualmente, se surpreende quando num determinado dia, do nada, a esposa informa que está grávida e que o seu bebê nascerá na época do Natal. Assim, por meio da instauração de um tom mítico e, por sua vez, fantástico, nós acompanhamos a jornada desta mulher e seu fluxo de pensamento vertiginoso, preocupada com as impressões, mergulhada no processo de se tornar mãe e, ainda mais, de conceber um ser humano imaculado.

Juntos, sem crise, o casal decide mudar para o interior de Minas Gerais. Adotam uma estrutura semelhante ao local onde Maria concebeu Jesus Cristo. O cenário, que nos remete ao que classicamente conhecemos como representações natalinas, traz a manjedoura, os animais do celeiro, em linhas gerais, toda a cena referente ao dia 24 de dezembro do nosso calendário, transformado atualmente com as mudanças culturais oriundas do impacto do capitalismo na relação da sociedade com o período natalino. Inicialmente, eles decidem nomear a criança de Jesus. Mas, logo depois, modificam para Emmanuel. Neste desenvolvimento simbólico, o marido decide de chamar José. Juntos, eles reconstroem os significados de suas vidas.

Interpretar um conto de Clarice Lispector é uma missão que geralmente nos abre espaço para debates de diversos tipos. Há um feixe enorme de possibilidades interpretativas e duas vertentes que pude perceber ao ler o conto estão descritas nestas linhas breves, mas acredito que elucidativas: a vivência de uma via que culmina nos significados natalinos em sua gênese e a perturbação do feminino diante de acontecimentos que muitas vezes não podem ser explicados de maneira objetiva. Maria das Dores, em sua existência, se vê aturdida diante do lugar desta criança em um mundo que ela sequer compreende direito. Questionadora, levanta hipóteses: e se o filho atravessar a via crucis tal como Jesus Cristo? Ademais, por meio da ironia, a narradora levanta questionamentos que não estão diretamente na materialidade do texto, mas que pululam diante do comportamento dos personagens: seria Maria realmente virgem? O filho, concebido da maneira descrita, poderia ser de outro homem? Quais sensações ou ansiedades estariam por detrás da glutonaria dos personagens ao comer demasiadamente ao passo que o conto avança? Na via crucis de Maria das Dores, o corpo é um espaço insólito e a sexualidade, debatida de maneira subjetiva, abre espaço para a mulher questionar o seu lugar numa sociedade ainda domada pelo patriarcalismo. Tudo isso, num conto simples, mas muito significativo.

Via Crucis (Brasil, 1974)
Autor: Clarice Lispector
Editora original: Rocco
5 páginas

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