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Crítica | Samurai de Olhos Azuis – 1ª Temporada

Os olhos sem rosto.

por Ritter Fan
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Na última vez que encarei uma animação sobre um samurai nada ortodoxo no Japão feudal produzida pelo Netflix, minha decepção foi infinita. Yasuke, que tinha tudo para ser uma grande série sobre um personagem histórico, tornou-se uma papagaiada ridícula sem pé, nem cabeça, que se passa em um “passado” alternativo (e completamente idiota). Portanto, foi com compreensível hesitação que comecei a assistir Samurai de Olhos Azuis, desta vez sobre um personagem 100% ficcional em uma ambientação historicamente acurada que é exatamente como Amber Noizumi, uma das criadoras, disse que é, ou seja, um encontro entre Kill Bill e Yentl.

No entanto, tenho para mim que Noizumi ou foi modesta ou preferiu caracterizar sua obra de maneira chamativa, sem dúvida para atiçar a curiosidade de espectadores, mas que ficou longe, muito longe de ser o que ela e seu marido Michael Green efetivamente acabaram colocando nas telinhas. Samurai de Olhos Azuis é mais do que uma história de vingança e é mais do que uma história de uma mulher que se disfarça de homem para alcançar seus objetivos. É mais inclusive do que a combinação desses dois aspectos. Na verdade, a primeira temporada da série (se o Netflix não renovar, coloco fogo na sede deles e cometo seppuku!) é uma complexa história sobre dor, obsessão e honra; é sobre moralidade, sobre ter um código, sobre olhar para os lados e não apenas à frente; é sobre egoísmo e o preço que isso cobra; é sobre tolerância, ódio, xenofobia, racismo, sobre desigualdade de gêneros; é sobre corrupção da alma por dinheiro, por posição política, por dor; é sobre olhar para si mesmo e detestar o que vê; é, no final das contas, sobre um luta inglória que desvela sempre o pior, ainda que por vezes o melhor, da humanidade. E tudo tendo como pano de fundo um fascinante momento da História do Japão em que o país arrochou ainda mais sua política externa isolacionista, conhecida como sakoku, matando e expulsando ocidentais de suas terras e demonizando aqueles que tiveram o azar de nascer da mistura de raças.

Mizu (voz original de Maya Erskine) é um samurai repleto de segredos em um jornada obsessiva de vingança, mas, na verdade, essa frase descritiva está completa errada. Mizu, na verdade, é uma mulher birracial que passou a vida toda como homem para chegar ao ponto em que chegou quando a vemos no começo da temporada. Ela sequer é uma samurai, na verdade. Ela é sim uma exímia espadachim, mas ela não tem código algum que não seja sua raiva cega que almeja matar as quatro pessoas brancas que viviam no Japão quando ela nasceu e que ela reputa como responsáveis por todas as suas tragédias. Mas que tragédias são essas? Muita coisa é explicada ao longa da narrativa inteligentemente não linear dos roteiros que mantém o espectador sempre aprendendo coisas novas sobre Mizu e seu passado, mas a grande verdade é que sua vingança é contra aqueles que tornaram possível sua própria e infeliz existência como um monstro de olhos ocidentais azuis que é odiado por seus dois povos. Ou seja, nada da boa e velha vingança na base do “mataram um ente querido” ou até mesmo um cachorro como em uma certa franquia bacana e muito adorada, mas que é rasinha como o proverbial pires. Samurai de Olhos Azuis é, fundamentalmente, uma luta interna de sua protagonista para se aceitar ou para liquidar com aqueles que a tornaram inaceitável sob quaisquer olhos, até mesmo os dela que ela disfarça sob um jingasa e atrás das lentes amareladas de seus óculos. Mizu é a encarnação da vergonha e ela quer se livrar desse sentimento opressor exterminando o seu passado em uma jornada autodestrutiva que também é de descoberta.

Orbitando ao redor da fúria vingativa que é Mizu, há o sempre positivo cozinheiro rechonchudo e sem mãos Ringo (Masi Oka) que começa a idolatrar a espadachim quando a vê em ação no restaurante em que trabalha e passa a segui-la para ser seu pupilo, somente para, aos poucos, perceber que de verdadeiro samurai ela não tem nada, decepcionando-se no processo e, também, o arrogante samurai Taigen (Darren Barnet) que compartilha o passado com Mizu e que igualmente passa a segui-la, mas não por idolatria e sim por querer a chance de lutar com ela novamente em um duelo. Em paralelo à narrativa central, acompanhamos a Princesa Akemi (Brenda Song) que ama Taigen, mas cujo pai planeja outro destino para ela e cuja história vai, aos poucos, abrindo o leque da temporada para lidar com a nobreza, o xogunato e as relações secretas deles com o ocidente, aqui representado pelo sinistro contrabandista irlandês Abijah Fowler (Kenneth Branagh) que permanece recluso em um castelo e que tem ambiciosos planos para o país que adotou, além de ser, claro, o alvo da vingança de Mizu ao longo dos episódios. Todos esses e outros personagens – como esquecer do sábio e paciente Mestre Eiji (Cary-Hiroyuki Tagawa), forjador cego de espadas que criou Mizu, do amoroso e altruísta Seki (George Takei), tutor de Akemi, e do manipulador Heiji Shindo (Randall Park), cúmplice de Fowler? – refletem com muita perceptividade traços da personalidade de Mizu, tanto os que ela tem quanto os que queremos que ela tenha, seja a independência tolhida de Akemi, a bestialidade de Fowler ou a pureza inocente de Taigen, passando pela dedicação de Ringo, o amor do Mestre Eiji e a fidelidade de Seki.

E essa riqueza toda é refletida na complexidade da narrativa, em que a jornada de vingança, essencialmente simples em sua concepção, passa por transformações e alargamentos que desafiam Mizu e não apenas técnica e fisicamente, mas também e principalmente moralmente, levando-a a indagar quem exatamente ela é, tema que, em razão de sua origem e do segredo que esconde ao enfaixar seu seios e engrossar a voz, é da essência da série. A progressão narrativa merece aplausos aqui, aliás, pois o desenvolvimento de Mizu não é daqueles “mágicos” (falando em mágico e mudando rapidamente de assunto, por tensos segundos eu cheguei a imaginar que ela teria poderes especiais em razão da origem do metal de sua espada, o que seria uma desgraça completa…), em que a espadachim egoísta que só se interessa pelo que ela acha que tem que fazer muda completamente e se torna uma seguidora do Bushido. Muito longe disso, o que a temporada faz é oferecer lampejos à protagonista do que ela deveria ser, mas sem levá-la imediatamente na direção esperada. A origem do incêndio do último episódio (que ocorreu de verdade e destruiu Edo – como Tóquio se chamava na época – e matou mais de 100 mil pessoas, efeito semelhante, por incrível que pareça, às bombas atômicas jogadas centenas de anos depois em Hiroshima e Nagasaki) é prova do quanto Mizu mantém-se teimosamente em seu caminho destrutivo e autodestrutivo.

A direção de arte de Samurai de Olhos Azuis enche os olhos (sim, fiz um trocadilho sem graça). A equipe de artistas parece ter alcançado o equilíbrio mágico entre exatidão histórica, realismo visual, explosões de violência, coreografias de luta e personagens que carregam leves traços caricaturais que em momento algum tiram a imersão. Os figurinos parecem peças dignas de museu da mesma forma que as lutas com instrumentos cortantes e eviscerantes parecem sequências perfeitas de estética da violência, com cada momento “absurdo” – como é aquela “espadada no dente” no dojo de Taigen – funcionando não somente em si mesmo, mas também para elevar o status de Mizu ao de lenda, como realmente aconteceu com grandes espadachins da época. E a técnica de animação, uma computação gráfica 2D com efeitos 3D é, em combinação com uma paleta de cores rica quando precisa ser, mas emudecida em grande parte, é, usando uma expressão técnica restrita apenas a críticos de cinema de cachecol no pescoço, boina na cabeça e cachimbo na boca, de fazer o queixo cair, uma das melhores do serviço de streaming até agora, cortesia do estúdio francês Blue Spirit (Minha Vida de Abobrinha).

E a trilha sonora? A compositora Amie Doherty que, na televisão, compôs a música das ótimas Undone e Mulher-Hulk, retorna para criar uma espécie de fusão de seu material anterior, aliando o lirismo e a energia lisérgica da série animada de Raphael Bob-Waksberg e Kate Purdy, com o cinismo e a explosão da série da Marvel Studios, resultando em uma trilha potente, mas cirurgicamente pontual que enaltece e também condena a jornada de Mizu. E, como se isso não bastasse, Green e Noizumi trataram de inserir uma inesperada versão em japonês de For Whom the Bell Tolls, do Metallica, por Emi Meyer, que funciona como pano de fundo sonoro para o sexto episódio, aquele em que Mizu invade a fortaleza de Fowler.

Aproveitando a deixa, devo confessar que minha maior (ou seria única?) implicância com a temporada é justamente com All Evil Dreams & Angry Words, o sexto capítulo, o único que eu assisti duas vezes não exatamente por querer, mas pelo Netflix ter disponibilizado uma versão em preto e branco dele em seu canal do YouTube (mas eu prefiro a original mesmo). Em termos técnicos, não tenho nada a reparar, pois ele segue a qualidade impressionante de tudo o que veio antes e vem depois, mas, em termos estruturais, com Mizu caindo no que parece demais uma fase de um videogame com diversas armadilhas para chegar até Fowler, o final boss, a escolha me pareceu descolada demais da lógica interna da série que preza por um “realismo exagerado” que não precisava desse artifício banal consideravelmente fora do eixo e, sinceramente, com desafios não muito inspirados.

Eu poderia acrescentar a essa minha implicância a quantidade de vezes que Mizu passa perto da morte, somente para ser salva no último segundo, recuperando-se logo em seguida ou no também considerável número de vezes em que ela surge do nada para salvar o dia, mas aí eu já estaria ultrapassando uma barreira que não quero ultrapassar exatamente por reconhecer e aceitar que o exagero faz parte do DNA de Samurai de Olhos Azuis e, muito francamente, uma boa parte de sua graça visual. Afinal, vamos combinar que é raro encontrar violência gráfica no grau que encontramos aqui aliada a uma narrativa corajosa, inteligente e complexa que não entrega nada com facilidade e não encontra saídas fáceis e esperadas para os dilemas que a protagonista enfrenta.

Samurai de Olhos Azuis é, em resumo, um triunfo audiovisual que eu fiquei tão feliz assistindo que eu não queria que acabasse, além de eu ter feito um esforço hercúleo para não ver tudo de uma vez (essa série tinha que ter sido lançada semanalmente!), me forçado a economizar e a degustar cada episódio como se fosse o último. E o melhor é que a criação de Green e Noizumi não é espetacular porque meu sarrafo foi lá para baixo com Yasuke (e um pouco com Onimusha), mas sim porque ela consegue ser comparável às melhores séries animadas modernas oferecidas em grandes quantidades por aí. Que venha a segunda temporada!

Samurai de Olhos Azuis (Blue Eye Samurai – EUA, 03 de novembro de 2023)
Criação: Michael Green, Amber Noizumi
Direção: Jane Wu, Ryan O’Loughlin, Earl A. Hibbert, Alan Wan, Michael Green, Sunny Sun, Alan Taylor
Roteiro: Michael Green, Amber Noizumi, Yana Bille-Chung
Elenco: Maya Erskine, Masi Oka, Darren Barnet, Brenda Song, George Takei, Randall Park, Cary-Hiroyuki Tagawa, Kenneth Branagh, Stephanie Hsu, Ming-Na Wen, Harry Shum Jr., Mark Dacascos, Orli Mariko Green, Judah Green, Patrick Gallagher
Duração: 

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