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Crítica | Os Mistérios (The Mysteries)

O estranho retorno de Bill Watterson.

por Ritter Fan
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Bill Watterson é um figura lendária e Os Mistérios (minha tradução literal para o título em inglês The Mysteries) intensifica ainda mais esse seu status. O cartunista americano nascido em Washington, D.C., em 05 de julho de 1958, surgiu para o mundo do mais completo anonimato em 18 de novembro de 1985, quando a primeira tira de Calvin e Haroldo foi publicada em 35 jornais dos EUA. No primeiro ano, 250 jornais de lá já publicavam as histórias do menino de imaginação febril e de seu tigre de pelúcia que ganhava vida a partir de seu ponto de vista e, não demorou muito, a dupla passou a ser publicada em centenas de outros periódicos mundo afora, efetivamente mudando como as tiras de jornal passaram a ser publicadas e formatadas, com encadernados reunindo a obra sendo lançados também mundialmente nos anos que se seguiram.

No entanto, Watterson sempre manteve sua criação muito próxima de si mesmo. Somente ele a desenhava e escrevia e ele mantinha o controle criativo total, a ponto de sempre ter terminantemente proibido qualquer produto licenciado baseado em sua obra em uma demonstração de integridade que é raríssima de se ver por aí. Nem mesmo animações foram produzidas, apesar de ele, em uma de suas raras manifestações públicos, ter afirmado que gosta de animações. E, em 31 de dezembro de 1995, sem maiores explicações e sem fanfarra, a última tira foi publicada, com o autor não só jamais retornando a ela (até agora pelo menos) e, mais, recolhendo-se completamente a uma vida completamente reclusa, longe dos holofotes da imprensa e das lentes de paparazzi, ou seja, distante da enorme fama que sua criação lhe proporcionou. Watterson, para todos os efeitos, “sumiu do mundo”, retornou ao seu status quo pré-Calvin e Haroldo, e deixou essas tiras serem suas únicas criações intelectuais que chegaram ao público em geral depois que ela começaram a ser publicadas.

Corta para algum momento em 2023 e Os Mistérios foi anunciado também sem muito alarde como o retorno de Watterson aos quadrinhos. Quando soube disso, não quis sequer saber sobre o que seria e tratei de fazer a pré-compra da obra física (já que, bem no estilo do autor, ela não foi lançada digitalmente). Quando ela chegou em minhas mãos, devorei-a em literalmente cinco minutos (sim, LITERALMENTE) e cocei a cabeça, retornando para ler novamente e, pausadamente, apreciar a arte do que poderia chamar de conto ilustrado para adultos que parece um conto de fadas no estilo clássico, mais sombrio e pesado, com uma lição de moral na mesma linha. Trata-se de de uma obra em colaboração com o caricaturista John Kascht que vinha sendo criada (imagino que muito lentamente) pelos dois há alguns anos e que não poderia ser mais distante de Calvin e Haroldo (ou nem tanto, como abordarei em breve).

Mas a distância é bem-vinda, claro, pois tudo que eu não esperaria de Watterson era um retorno ao “mais do mesmo”, ainda que eu pagasse feliz por novas tiras de Calvin e Haroldo pelo autor. Os Mistérios é uma publicação em formato quadrado, com encadernação de luxo, com páginas brilhantes de alta gramatura e capa de tecido preto, com ilustrações em preto e branco por Watterson e Kascht do lado direito e textos curtos, não mais do que cinco breves frases, do lado esquerdo, como na imagem inserida logo abaixo. Na história, somos apresentados a um mundo (cidade?) medieval que é assombrado por criaturas/seres chamados unicamente de Mistérios e essa assombração os leva a construir muros ao redor e a contar lendas sobre aquilo que desconhecem, criando obras de arte que materializam aquilo que imaginam do desconhecido. Tudo muda, porém, quando um rei, que envia um exército para investigar os Mistérios, finalmente captura um deles.

A narrativa é muito – mas muito mesmo! – simples e direta, mas ao mesmo tempo muito interessante e desafiadora (no sentido de subverter expectativas, não de complexidade), que aborda o medo do desconhecido, o momento em que o desconhecido deixa de ser desconhecido e a humanidade acha que sabe tudo sobre ele, somente para isso servir de caminho para sua derrocada. É obviamente uma abordagem niilista, com as imagens que acompanham o texto muito mais servindo para assombrar o leitor do que efetivamente ajudando a diretamente contar a história. Watterson e Katsch nos levam a essa viagem curta, mas ambiciosa e muito bonita com o esfumaçamento do grafite usado na arte funcionando maravilhosamente bem para diversas funções, como desfocar o segundo plano, alterar as feições já fortemente caricaturais dos personagens e criar uma atmosfera tensa e, de certa forma, assustadora.

Mas a mensagem, diria, é algo que bebe furtivamente de Calvin e Haroldo. O desconhecido é algo que a dupla aventureira sempre procurou enfrentar e, por diversas vezes, as conclusões sábias tiradas pelos dois caminhavam por um lado mais sombrio e pesado, mesmo que a arte e a premissa suavizassem esse aspecto. Calvin e Haroldo até pode, na superfície, ter sido uma tira de jornal para crianças, mas tenho para mim que seu verdadeiro magnetismo e consequente sucesso se deu em razão do quanto ela conversava também com os adultos, criando diferentes camadas de leitura dependendo da idade do leitor. Essa pelo menos foi a sensação que tive quando, há alguns anos, comprei o encadernado contendo Calvin e Haroldo em sua integralidade e reli tudo com olhos de um adulto, bem diferente daqueles olhos famintos pelas tiras diárias em uma época em que o acesso a ela se dava exclusivamente pelas fedidas páginas de jornais físicos.

Por outro lado, Os Mistérios é também uma decepção. Não sei exatamente explicar o porquê, pois eu acho que é uma conjunção de fatores, dentre eles a malfadada expectativa (sempre um problema!) e o tamanho da obra em si que, como disse, é consumível em poucos minutos com um “valor de repetição” consideravelmente baixo, exatamente o oposto de Calvin e Haroldo. Não há o que podemos chamar de personagens, a moral da história é consideravelmente didática, a arte por vezes é desconectada do texto e sequer existe uma história efetiva se eu quiser ser sincero, tudo permanecendo muito mais como um alerta do tipo “não desdenhe daquilo que você acha que conhece” do que com uma narrativa estruturada.

Os Mistérios, portanto, é uma obra completamente inesperada vindo da mente de Bill Watterson, mas uma que não preenche nem de longe o vácuo criativo de 28 anos que ele deixou desde que parou de escrever Calvin e Haroldo. Por outro lado, trata-se de uma obra genuína, ou seja, uma obra que realmente parece vir do âmago de seus autores e que não existe apenas para “vender” ou justamente para preencher o tal vácuo criativo que mencionei. É algo que seus autores muito claramente precisavam “colocar para fora”, pouco importando o que eu, você, ou qualquer um ache dela. E eu admiro e aplaudo artistas íntegros sobre sua arte dessa maneira, como foi e tem sido toda a carreira de Watterson. Podem ter certeza de que, se ele lançar qualquer outra coisa, eu estarei lá para prestigiá-lo. Os 10 anos de Calvin e Haroldo que eu tive diariamente em minha vida foram preciosidades que eu nunca esquecerei e só isso é uma licença automática minha (olha a pretensão!!!) para Watterson fazer absolutamente o que quiser em termos artísticos.

Os Mistérios (The Mysteries – EUA, 2023)
Roteiro/texto: Bill Watterson
Arte: Bill Watterson, John Kascht
Editora: Andrews McMeel Publishing
Data de publicação: 10 de outubro de 2023
Páginas: 72

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