O volumoso romance Drácula, de Bram Stoker, publicado em 1897, gerou uma série de produções em outros suportes narrativos, algo que chamamos de adaptações. Nosferatu, dirigido pelo cineasta alemão F. W. Murnau, lançado em 1922, é uma destas narrativas. Marco na história do cinema por diversos motivos. Primeiro, causou polêmica, por ter sido uma tradução não autorizada do livro, situação que gerou um processo judicial envolvendo a viúva de Stoker, favorecida pelos tribunais, tendo deliberada a sentença de apagamento de todas as cópias do filme. Claro que alguém soube bancar o memorialista e anos depois, cópias foram encontradas, para o bem da cultura e da história do cinema. Segundo, a narrativa de horror possui importância no quesito estético, pois é representativa do movimento expressionista nas artes do século XX. Somamos ai, um terceiro aspecto: as suas qualidades dramáticas. Apesar das limitações tecnológicas de sua época, Nosferatu é um filme com excelente construção atmosférica, funcionando muito melhor algumas tramas contemporâneas, privilegiadas com maiores recursos de tradução do conteúdo gótico e perverso de Drácula, para o suporte narrativo audiovisual.
É este o percurso programado para você, caro leitor. Vamos nessa?
Cinema e Expressionismo: Estética e Contexto em Nosferatu
Com peculiaridades para cada modalidade artística, o expressionismo se desenvolveu em território alemão numa era de consideráveis mudanças políticas, sociais e culturais. Em linhas gerais, o movimento em questão se refere ao trabalho dos pintores do final do século XIX e começo do XX, representação que buscava no uso estático da cor e na distorção emotiva da forma uma maneira dos artistas projetarem os seus sentimentos. Ao traduzir essa plástica para a linguagem do cinema, os realizadores apresentavam cenários tortuosos, jogos de luzes e sombras que evidenciavam bastante o contraste e, consequentemente, sinalizavam o tom atordoador das situações delineadas ao longo das narrativas, imagens que deturpam a realidade e transformam a atmosfera fílmica em um clima angustiante de pesadelo.
Na dinâmica expressionista, podemos encontrar uma recorrente tentativa de colocar em cena, o estado de espírito dos personagens, desenhando na tela as particularidades do psicológico, subjetivo e nem sempre compreensível. No caso de Nosferatu, por exemplo, temos estabelecido o tom gótico do vampiro ameaçador, o medo reforçado pela maquiagem expressiva dos personagens aturdidos, a cenografia gótica captada pela direção de fotografia que emula pinturas pontuais do movimento artísticos em questão, como se a tela as colocassem em movimentação. Profundidade de campo, para ampliar a sensação de perigo e aumentar a dimensão dos personagens em cenários perigosos, dentre outros recursos que tornaram esta vanguarda singular nos primórdios do século XX, ressoante até hoje em narrativas cinematográficas.
Nosferatu: Uma Análise Panorâmica
Primeira e única produção da Prana Films, empresa que decretou falência logo após a realização de Nosferatu, a narrativa modifica nomes e alguns aspectos como disfarce, mas mantém a mesma linha estrutural de desenvolvimento do romance que toma, sem autorização, o ponto de partida. Drácula aqui é tratado como o Conde Orlok (interpretado pelo ator de teatro Max Schreck). Em 1838, ele solicita ao agente imobiliário Herr Knock (Alexander Granach) que envie alguém para resolução de algumas questões. É quando Hutter (Gustav von Wangenheim), aqui, na posição de Jonathan Harker, segue para a Transilvânia com planos de fechar um bom negócio. Ele deixa a sua esposa (Greta Schroder) em casa e segue em sua travessia encarada com assombro por todas as pessoas que encontra pelo caminho. Só a menção do destino transforma o personagem, na visão de quem o observa, num indivíduo amaldiçoado. Góticas, as paisagens contempladas pelo cético Hutter são distorcidas, algo que podemos vislumbrar por meio da curiosa estética do filme. É um design que nos passa a sensação claustrofóbica e de perigo que se revelará depois que o funcionário tem o primeiro contato com o Conde Orlok, uma figura bizarra e muito assustadora. Nós, que sabemos ser este personagem um vampiro, acompanhamos a saga dolorosa do homem que é aprisionado pelo monstro. Sufocado pela situação de horror, ele precisa arrumar forças para voltar ao seu lar, pois ao deixa-lo trancafiado em seu castelo, a criatura maligna possui planos diabólicos de dominar a sua esposa e estabelecer um império vampírico na cidade grande.
Em seu desenvolvimento, o roteiro de Henrik Galeen é transformado em imagens pela excelente direção de fotografia de Fritz Arno Wagner, parte da equipe técnica de F. W. Murnau que sabiamente insere um manancial de referências da pintura para a composição dos enquadramentos interessados em manter a sensação de horror sobrenatural em constância. Aturdido no decrépito castelo, Hutter batalha com todas as suas forças para vencer os obstáculos e conseguir salvar a todos dos males de Nosferatu. A sua atitude, no entanto, não consegue dar conta de salvar a esposa, jovem que à espera do esposo e já desiludida, se entrega ao vampiro como forma de resolver o grande problema causado pela chegada da criatura monstruosa ao epicentro da cidade. Pragas, mortes e um rastro de medo demarcam a passagem do vampiro pela região, laços atados devidamente resolvidos apenas após a dizimação da figura diabólica. O final é favorável para o coletivo, mas as marcas ficaram para sempre na saga de Hutter, realmente amaldiçoado como as pessoas o viram desde os primeiros passos rumo ao castelo na Transilvânia. Tal como Drácula do romance, o vampiro de Murnau é aniquilado, mas deixa um legado de horror inimaginável, observado pelos enigmáticos jogos de luzes e sombras da estética apurada do cineasta responsável pela empreitada narrativa, acompanhada na época pela partitura de Hans Erdmann, perdida com o tempo, mas parcialmente recuperada por pesquisadores que conseguiram resgatar alguns traços deste clássico que quase se perdeu em sua totalidade, mas sobreviveu para ser assistido, refletido e interpretado.
Desdobramentos de Nosferatu: Interpretações, Legado e Impacto Cultural
Interessante observar que diante dos clássicos, muitas vezes nos desdobramos diante de seus recursos estéticos valiosos, mas deixamos de lado interpretações pontuais. As motivações para manutenção de Nosferatu como um clássico que nos explica as bases da formação do cinema enquanto linguagem são indiscutíveis. Este é um filme para ser conferido e conhecido por qualquer pessoa interessada em compreender o potencial do discurso artístico e suas ressonâncias na vida cotidiana. É uma produção para pensarmos nos aspectos que compõem a direção de fotografia (enquadramentos, ângulos e iluminação), a concepção do design de um filme (cenografia, direção de arte, maquiagem), direção de atores, estratégias de lançamento, dentre outros. A história de desenvolvimento, lançamento e crítica de Nosferatu é tão instigante quanto o próprio conteúdo do filme em si. Serviu de inspiração para cineastas posteriores e se tornou uma referência dentro de um profícuo movimento artístico conhecido por refletir questões sociais de uma época de muitas transformações culturais.
Há, no entanto, por trás de toda a sua beleza e importância artística, pontos contextuais que nos mostram um lado peculiar de sua magnitude, ponto menos discutido em comparação aos demais debates, focados em sua influência artística. Assim como Drácula trazia em sua estrutura as inseguranças do império britânico diante da chegada de estrangeiros, Nosferatu metaforiza em seu desenvolvimento o medo do “outro”, com possíveis associações antissemitas. A aparência do Conde Orlok foi comparada, por diversos especialistas, ao que se fazia de caricatura sobre os judeus na época. A proximidade do vampiro com os ratos também é uma interpretação para estas ligações xenófobas, pois o povo em questão era costumeiramente comparado aos roedores, neste caso, agentes causadores de doenças. Ao se interessar em instalar-se em Wisborg, o Conde Orlok estabelece um paralelo com a inquietação dos alemães diante de ameaças invasoras, uma questão política que acirrava os ânimos de um período de desconfiança e incertezas para muitos europeus. Em linhas gerais, é a sina dos clássicos, realizações que refletem demandas de suas respectivas épocas. Não é um ponto que diminua os atributos dramáticos e estéticos do filme, mas algo para nos fazer pensar seu legado e impacto cultural além das contribuições de sua superfície.
Ademais, Nosferatu influenciou diversos vampiros posteriores. Foi refilmado por Werner Herzog em 1979, numa releitura fascinante do mito deste icônico personagem. Em Os Vampiros de Salem, dirigido por Tobe Hooper neste mesmo ano, a criatura nefasta que aterroriza as suas vítimas incautas possui um visual muito semelhante ao monstro criado pela equipe de F. W. Murnau. Com projeto em andamento para uma nova versão na década atual, o clássico expressionista inspirou quadrinhos, romances, séries, games e em 2000, ganhou uma curiosa interpretação, dirigida por E. Elias Merhige, conhecida como A Sombra do Vampiro. Na sátira, John Malkovich é o cineasta alemão em processo de produção de Nosferatu. A sua equipe, sem sequer desconfiar que o ator a representar o monstro é um vampiro de verdade, passa por uma amontoado de peripécias delineadas por diálogos ácidos e metalinguagem. São narrativas que reforçam o poder da imagem em nosso imaginário e o potencial dos clássicos em suas constantes reinvenções. Avançamos, constantemente, em nossas linhas de raciocínio, mas em diversas ocasiões, necessitamos voltar aos mitos para compreender as suas dimensões em nossas existências. E Nosferatu, como mitologia, ainda se mostra muito evidente.