Todo juízo sobre uma obra evoca, necessariamente, uma atitude, por parte do consumidor, de extrapolar a dimensão unicamente interior do Texto e concatenar outros elementos circundantes para a construção do julgamento. No caso da literatura, é inevitável que certos aspectos como gêneros literários, ano de publicação, autoria, editoração e outros elementos se aliem na equação avaliativa para fomentar uma prévia expectativa do leitor em relação ao objeto da leitura. Digo isso porque ao me propor ler Estação Onze, romance da canadense Emily St. John Mandel lançado originalmente em 2014 e adaptado como minissérie em 2021, minhas expectativas não eram das maiores por dois motivos principais: o histórico de títulos publicados pela editora brasileira que traduziu o livro, Intrínseca, não é dos mais impressionantes, no sentido de que usualmente são obras mais “comerciais” em detrimento de seu grau qualitativo; e, como segunda razão, Estação Onze se insere em um nicho específico da literatura de língua inglesa contemporânea, que abarca autoras e autores como Jennifer Egan, Donna Tartt, Tom Perrotta etc., no qual as narrativas habitam um local fronteiriço entre dois campos imaginários (e de separação problemática, sem dúvida), mas muito vivos no pensamento literário, que são o de uma literatura “séria e profunda” e o de outra mais “superficial”, “vendável” e construída com mecanismos narrativos conscientemente montados para “capturar” o interesse do leitor. Ou seja, trata-se de autores cujas obras habitam um limiar indefinido que simultaneamente os alçam a prêmios e listas de “melhores do ano”, mas também ao estatuto de best sellers de topo de listas de vendas.
Justificativa dada em relação a um prévio juízo do romance, o fato é que Estação Onze, ainda que habite com muita certeza esse campo ambíguo, também consegue, em dados momentos, sobressaltar esse lugar-comum condenatório e extrapolar – mesmo que de maneira controlada – os campos discursivos esperados durante a leitura de uma obra assim. A narrativa parte de uma situação já trivial na literatura contemporânea: como lidar com o colapso social após um extermínio em massa da humanidade? Trata-se de um motivo recorrente e já bem estabelecido no cenário da ficção científica – extrapolando, inclusive, o campo da literatura -, no qual usualmente os caminhos narrativos se bifurcam para questionamentos morais, de crença ou de organização social. Assim, após uma gripe derivada da gripe suína atravessar o Oceano Atlântico e chegar à América do Norte na mesma noite em que um ator infarta no palco ao interpretar Rei Lear, a civilização – ao menos para o mundo daqueles personagens que habitam a fronteira Canadá-EUA – desmorona em alguns dias e as pessoas passam a viver em um típico mundo pós-apocalíptico, cujos habitantes se organizam em pequenas sociedades/cidades improvisadas, numa tentativa de elaborar propostas de vidas distintas em meio ao caos e à incerteza. É neste cenário, levemente aprofundado ao longo de romance, que acompanhamos Kirsten, uma jovem atriz que sobrevive como integrante da Sinfonia Itinerante, grupo que percorre as novas cidades apresentando performances musicais e peças de Shakespeare.
A primeira questão é que, ainda que haja uma espécie de “protagonista” ao longo do romance, Mandel organiza a narrativa de maneira a, gradualmente, de-sedimentar uma possibilidade clara e estabelecida de progressividade temporal e narrativa, no sentido de que constantemente as temporalidades evocadas pela obra se entrelaçam e guiam o leitor por um vai-e-vem quase desconcertante. Não apenas o momento do contágio é aqui reivindicado, como também anos, décadas anteriores em que Kirsten nem mesmo era viva e nas quais o contraste entre um mundo pretensamente estabelecido em uma solidez e o “presente” de sua falência se acentua – e se reforça nos diálogos dos personagens como sujeitos que buscam apreender uma realidade anterior que já não se faz. Por isso instrumentos, estilos de vida, formas de economia são constantemente trazidos às suas subjetividades em função de criar esse embate paradoxal entre o mundo que se habita hoje, o mundo que se foi e os restos que ele ficaram e criaram uma transição. E é também por esse mesmo motivo que aqueles personagens que ainda eram jovens quando a epidemia se instaurou são aqueles sobre os quais Mandel debruça um olhar mais demorado.
No entanto, o vai-e-vem espaço-temporal não existe apenas em função da disposição conflituosa de duas concepções de realidade – e soberania humana -, mas também, por sua extensão que atravessa décadas, como uma maneira de, aos poucos, diluir uma ideia de protagonismo que se possa encontrar na obra. Portanto, sim, Kirsten ainda, de certa forma, guia a narração do “presente” e existe como costura entre os dois mundos, no entanto Mandel dilata de tal maneira as temporalidades que outros personagens – que já estão mortos, que carregam um signo de um tempo outro – assumem progressivamente posições de destaque, no sentido de que suas complexidades, suas subjetividades e nuances são apresentadas ao leitor em histórias que quase assumem uma espécie de “existência à parte” devido à potência narrativa dada a elas. Assim, uma “bagunça” envolve a escrita, mas não carregada de um sentido negativo, e sim envolvida por um senso de confusão e perturbação por parte do leitor que não se cansa de avançar e retroceder naquele universo, constantemente transitando entre os dois mundos e percebendo suas nuances. E essa constelação de protagonistas que se forma na narrativa e entorpece um senso de organização linear do leitor parece existir em função de reforçar a grande tese da autora: o colapso só pode se extinguir na comunidade, no social.
Por isso mesmo as cenas que constantemente visitam aqueles passados dos personagens são envoltas em uma dedicação longa, em uma apresentação minuciosa e duradoura de suas vidas e as complexidades delas. É como se o romance quase advogasse, na verdade, pela abolição de uma ideia de protagonismo em função justamente da reafirmação de uma condição múltipla da narrativa traduzida em um conceito que serve como grande mote da história: a esperança. O Museu da Civilização criado por um desses personagens que, inesperadamente, adquire profundidade narrativa serve como um exemplo muito claro dessa intenção. Um grupo que ficou preso em um aeroporto no dia do colapso instaurou ali sua nova sociedade. Aos poucos, como uma maneira de manter o mundo que conhecem vivo – ou seja, manter ainda uma esperança -, os personagens começam a guardar todos os elementos materiais que um dia tiveram qualquer valor (simbólico, econômico, sentimental) em uma sala específica, destinada à exibição. Um museu de “relíquias” de um mundo que se perde: a mnemosine warburguiana surge como condição última de reprodução daquele desejo de perdurar, de talvez, de alguma forma, a única possível, manter uma espécie de memória de um tempo ao qual se quer muito voltar – ou não se quer mais. Celulares, cartões de crédito, motos, todos são empilhados e exibidos a um público que procura, nesses restos mortos, uma mínima forma de entender onde estão agora.
Trata-se, portanto, de um movimento muito belo que habita a obra. Parece-me, em última instância, que se trata de um romance que busca menos sua força num sentimento de “alarmismo” ou sedução moral pela hipótese do colapso, e mais na hipótese de que a memória só sobreviva na comunidade, no como viver juntos, sendo essa a única forma possível de esperança. Ainda que carregue as marcas de uma escrita certamente limitada – muitas vezes a autora apela para um exagero de descrições internas e externas que beira o vício, estagnado a ação e a revestindo de certa letargia discursiva -, Estação Onze é uma obra intrigante no sentido de que justifica muito bem sua posição social. Em meio às listas de mais vendidos e aos prêmios, é um sintoma de uma forma contemporânea de dispôr a literatura, sem dúvida. Entretanto, é também uma espécie minimamente refinada de evocar um desejo de transgressão dessas categorias. Transgressão unicamente possível quando se vive comunalmente.
Estação Onze (Station Eleven) – Canadá, 2014
Autora: Emily St. John Mandel
Edição lida para esta crítica: Intrínseca, 2015
Tradução: Rubens Figueiredo
320 páginas