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Entenda Melhor | A Música de Drácula

Uma viagem panorâmica pelas trilhas sonoras de filmes icônico personagem vampiro.

por Leonardo Campos
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Trilhas sonoras são recursos essenciais para a manutenção de um ritmo ao longo de uma narrativa cinematográfica. Na palestra “Trilha Sonora e Audiovisualidade: estudo das funções sonoras e suas relações com a imagem”, o pesquisador e especialista Reinaldo Maia contou que desde os primeiros tempos, a música e o cinema tiveram uma forte ligação. Uma das explicações era que tinha como utilidade, compensar o silêncio dos filmes e mascarar o ruído do projetor e da plateia, ainda não habilitada aos códigos que pediam bons modos durante uma exibição fílmica. Para saber mais, leia o nosso texto sobre Trilhas Sonoras. Em linhas gerais, a trilha sonora conduz o espectador pela narrativa, expressando sentimentos e dialogando com os elementos que são apresentados na trajetória dos personagens diante de seus conflitos. Nesta reflexão, apesar dos aspectos sonoros românticos de algumas passagens, o foco principal é a presença do horror como traço expressivo, pois as trilhas sonoras selecionadas radiografam as tramas que trazem o famoso Conde Drácula, personagem literário eternizado por Bram Stoker, para o campo narrativo audiovisual, o cinema, numa viagem que deflagra desde as primeiras traduções de suporte do romance aos filmes mais contemporâneos.

Como metodologia de análise para as trilhas sonoras deste artigo, geralmente seleciono as composições que fazem parte do recorte estabelecido no texto e mergulho na musicalidade do material por um longo período de seis meses. Em 2022, foi com as adaptações de Moby Dick, de Herman Melville, para cinema, série televisiva e ópera. Já 2023, a dedicação tem sido Drácula, de Bram Stoker. Ouvir a trilha a caminho do trabalho, nos momentos de escrita, leitura e demais práticas de estudo, nalguns casos, até mesmo nos afazeres domésticos. Concentrando nas peculiaridades de cada faixa, elas se tornam parte do cotidiano e, assim, fica mais orgânica a análise, tornando-se parte da minha constante busca por ampliação de repertório cultural, bem como sensibilidade e crítica para melhor compreender a função da trilha sonora além da perspectiva do entretenimento. Sendo assim, caro leitor, nesta empreitada desafiadora, teremos uma panorâmica abordagem sobre a composição de Hans Erdmann para Nosferatu (1922), James Bernard para O Vampiro da Noite, John Williams para Drácula (1979) e Wojciech Kilar para Drácula de Bram Stoker (1992), além de breves passagens ilustrativas de outros compositores pelo universo da criatura da noite mais expressiva da literatura e do cinema.

Um dos mais desafiantes deste processo é o trabalho de Hans Erdmann para Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror, o polêmico clássico expressionista de F. W. Murnau, lançado em 1922. Isso porque analisar uma trilha que não possui um álbum “original”, com encarte e ficha técnica é bastante desafiador, além disso, a textura de Hans Erdmann no geral é encontrada com orquestra de músicos da posteridade, pois o que se tem é a base da composição, não a trilha gravada e executada nas salas de cinema da época. Nosferatu é a produção mais icônica do expressionismo alemão. Nos primórdios da linguagem cinematográfica, ainda em estruturação, as trilhas eram executadas nas salas de cinema em consonância com a exibição do filme, ainda não sincronizadas com a película, algo que aconteceria mais adiante. O musical Cantando na Chuva, para os curiosos, traz de forma humorada os desafios deste contexto para maiores ilustrações daqueles que desejam se aprofundar e compreender melhor a época. Fica a dica. De volta, em 04 de março de 1922, a orquestra de Hans Erdmann tocou pela primeira vez a composição. Experiente em teatro e com uma respeitada carreira musical, ele se juntou ao grupo da Prana Film em 1921, tendo em vista assumir a desafiadora missão de compor para a adaptação não autorizada do romance Drácula, do irlandês Bram Stoker.

A composição dialoga com os padrões estéticos comuns ao cinema de F. W. Murnau: dividido em cinco atos, a música dialoga com aspectos do Romantismo, mas também recorre aos elementos peculiares do Barroco, do Classicismo e do Impressionismo. Com um Programa Sinfônico de grande formato, os propósitos poéticos são estabelecidos com instrumentos diversos de sopro, além da assertividade dos violinos. Os silêncios, magistrais, funcionam como passagens ideais para a atmosfera de pesadelo proposta pela trilha sonora desta que é uma das melhores traduções do romance de Bram Stoker para o cinema. Numa era ainda não estruturada para o design de som, Nosferatu trabalha criativamente uma imersiva paisagem sonora. É um trabalho espetacular. Do Barroco, traz o baixo contínuo sobre cordas, para modulação do tema principal, pegando do Classicismo as cadências simétricas. Ademais, a composição de Hans Erdmann dialoga com os surtos sonoros de violinos em consonância com seus crescimentos e diminuições tonais, aspectos comuns da linhagem impressionista na música. O formato desta trilha é o suíte, composição cíclica, anterior ao que conhecemos como sinfônico, na qual um conjunto de instrumentos está disposto para tocar sem interrupções. As informações mais específicas sobre a trilha sonora em questão foram encontradas no elucidativo artigo Regendo Uma Sinfonia de Horror: A Filosofia da Composição de Hans Erdmann em Nosferatu (1922), de Felipe Vale da Silva, encontrado na primeira edição da novelização do filme em língua portuguesa, publicação de luxo para o livro de Hughes Chelton, lançada pela Editora Sebo Clepsidra.

O compositor James Bernard é um dos nomes envolvidos na longa tradição do personagem Drácula no cinema. Não apenas assumiu os filmes da Hammer sobre o conde vampiro, mas também trouxe a sua contribuição para outras jornadas de horror do estúdio britânico. O Vampiro da Noite, dirigido por Terence Fisher, com Christopher Lee no papel do monstro. Trompas com sonoridade militar e tambores pesados demarcam a trilha sonora que também traz momentos de suavidade. A estrutura da composição, por sinal, foi emulada pelo artista musical ao longo de suas numerosas contribuições para a extensa jornada de Drácula no âmbito do estúdio. Há também cordas com tons agourentos e metais amplificadores da atmosfera de suspense como base para a textura que mais recentemente, ganhou um álbum com as faixas que também incluía trechos narrados pela voz por Lee, intérprete do vampiro em quase todas as sequências da Hammer. Os tambores, conhecidos por ajudar na marcação do tempo, colaboram com a personalidade rítmica da composição, juntamente com as trompas, instrumentos com variedades de timbres, por curiosidade, o segundo mais agudo da família dos metais, dominantes na trajetória de Drácula, neste que é considerado um dos principais e mais assertivos filmes a abordar o ponto de partida escrito pelo irlandês Bram Stoker.

Na composição sonora para Drácula, de 1979, a equipe do cineasta John Badham contou com o talento de John Williams, conhecido por Tubarão e tantos outros clássicos do cinema, para o acompanhamento da jornada do vampiro interpretado por Frank Langella. Entre a docilidade e as passagens obscuras, o músico entregou um trabalho pouco comum em sua trajetória. Inspirado no filme de Bela Lugosi, o primeiro do ciclo de monstros da Universal, não necessariamente tendo o romance como base principal para tradução de suporte, a versão em questão foca bastante na sensualidade do vampiro e nos aspectos românticos de Drácula, um personagem condenado, a viver para a eternidade. Dentre os destaques da textura percussiva, temos as cordas e a seção de metais para o tema principal, fincado em um tom gótico exuberante, tonalidade que volta em End Titles; For Mina e Night Journey são acompanhadas por uso de cordas e instrumentos de sopro, aplicados em passagens voltados ao clima romântico do filme; The Bat Attack, momento mais sombrio, é carregada de horror; além de The Abduction of Lucy, mixagem de flauta e cordas para estabelecimento de uma atmosfera complexa e sombria. No painel de trilhas sonoras do universo cinematográfico de Drácula, esta é uma das composições mais sofisticadas.

Por falar em sofisticação, não há como pavimentar uma travessia pelas composições musicais para os filmes sobre o personagem de Bram Stoker sem destacar a textura percussiva de Wojciech Kilar, parte integrante da tradução de Francis Ford Coppola, em 1992. De todas as eficientes trilhas sonoras realizadas para as inserções do vampiro no cinema, considero esta composição a mais assertiva de todas. Na época de produção, o realizador buscava um compositor que tivesse raízes no território europeu oriental. Em suas pesquisas, encontrou o músico polonês, fã do diretor desde O Poderoso Chefão, situação que permitiu o aceite para o projeto como algo imediato. Lisonjeado, o experiente Wojciech Kilar trouxe toda a bagagem de formação clássica em piano e composição para atender ao que o cineasta precisava. Assim, na produção da trilha sonora, estabeleceu quatro temas principais: o Tema de Drácula, usado com tom de horror, mas com traços de sensualidade nas cordas românticas; o piano e as trompas para o Tema do Caçador, neste caso Abraham Van Helsing; o Tema do Amor, composto com o acompanhamento de flautas para o clima de emoção e sensibilidade; e o Tema de Lucy, também com cordas e harpas, somado aos sinos, para o estabelecimento de uma perspectiva hipnótica.

100 músicos e um coro de 50 pessoas foram colocados para conduzir os fios narrativos da trilha em sua faixa de abertura, de quase sete minutos de duração. Fortemente pulsante, cadenciada por cordas graves, metais explosivos e instrumentos de percussão, a faixa em questão traz coros sussurrantes e uma soprano solitária para estabelecer o clima de solidão e luto para a tragédia da perda de Drácula. Em Hunther’s Theme, encontramos um tom militarista que volta mais adiante. The Journey, com seu ostinato de cordas apoiado por trompas graves e cordas estridentes acompanha a travessia de Jonathan Harker pela Transilvânia, rumo ao castelo de Drácula, o oposto do tom celestial das harpas em Lucy’s Party. The Storm se constrói com uso do Tema de Drácula, inserindo um coro, trompas e piano, juntamente com um coro masculino cantando em latim, utilizado em três dinâmicas do filme: a viagem no Demeter, a busca de Mina por Lucy sonâmbula no jardim e os momentos de loucura de Renfield no manicômio. Ademais, destaco também The End, faixa que traz um coro misto com aura religiosa, encerramento de uma textura percussiva eficiente, experiência auditiva espetacular.

Mesmo não fazendo parte da seleção inicial para este artigo, destaco o curioso caso de Philip Glass e do Quarteto Kronos na condução da trilha sonora para Drácula (1931), restaurado pela Universal no processo de reorganização de seu primeiro ciclo de monstros. O filme dirigido por Tod Browning, com Bela Lugosi no papel do famoso vampiro, não teve partitura específica, se contendo em apresentar O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky na abertura e uma passagem de Die Meistersinger von Nurnberg, de Wagner, numa cena de ópera. Executada em exibições realizadas pela Universal em 1999, a trilha foi lançada numa edição especial. O álbum traz 26 faixas, todas compostas por Glass, juntamente com David Harrington e John Sherba nos violinos, Hank Dutt na viola e Joan Jeanrenaud no violoncelo. Hipnótica e melancólica, os sons amadeirados do Quarteto Kronos entram em simbiose com o piano de Glass, com acordes e ritmos densos que demonstram um trabalho envolvente, mas com alguns trechos um tanto cafonas, ou talvez, no uso de uma adjetivação mais respeitosa, dissonante com a proposta cinematográfica do filme de 1931. O compositor de As Horas, uma das trilhas sonoras mais magníficas do cinema recente, já esteve na condução do horror em outra jornada, da década de 1990: O Mistério de Candyman, dirigido por Bernard Rose.

O mais famoso vampiro da história da literatura, bem como das traduções cinematográficas e televisivas, ganhou trilhas sonoras de diversos músicos estabelecidos na indústria em questão, sendo estes os principais destaques, não apenas por questões editoriais para o tipo do artigo desenvolvido para vocês, caros leitores, mas também por suas atribuições artísticas. Marco Beltrami, conhecido por colaborar com Wes Craven nas trilhas sonoras da franquia Pânico, mergulhou no universo de Drácula para a versão “2000” do clássico. Entregou nove faixas que mesclavam orquestra e sintetizadores, sendo a abertura com uma solista feminina e os acompanhamentos de um solo de violino a passagem mais interessante do corpo sonoro da trilha, de expressividade mediana. Quem também trabalhou em torno do personagem foi Ramin Djawadi, compositor que ao longo das 20 faixas, parece muito interessado em emular o estilo de Wojciech Kilar, uma tentativa sem o efeito desejado. Com uma orquestra de quase 80 músicos, variedade de instrumentos e coro competente, o desenvolvimento não é expressivo, mas traz alguns bons momentos, no encontro entre cordas e metais das faixas de ação. E, por fim, investi na audição do material de Bear McCreary para Drácula: A Última Viagem do Deméter, tendo em vista trazer o que há de mais recente sobre o personagem no cinema e, consequentemente, em uma trilha sonora, mas o trabalho, apesar de inspirado em alguns trechos, é o mais do mesmo do contemporâneo: jumpscare e excessos. Ademais, vida longa para Drácula!

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