- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Star Trek: Lower Decks retornou para sua 4ª temporada – com uma 5ª já em produção – com dois episódios lançados no mesmo dia, marcando a primeira vez em que isso acontece na segunda série animada do universo criado por Gene Roddenberry e, arriscaria dizer, a melhor do retorno da franquia para as telinhas. Fiquem, portanto, com as críticas de cada um dos episódios:
4X01
Twovix
Apesar de ter arcos próprios e ser rica o suficiente para ficar de pé sozinha, nunca foi nenhum segredo que um dos sustentáculos de Lower Decks sempre foi o uso constante de referências ao vasto universo da franquia onde a série de Mike McMahan está inserida, seja com citações a eventos e personagens muito conhecidos, seja a abordagem de detalhes que até os mais ávidos Trekkers precisarão esforçar-se para lembrar. Tem sido assim desde o começo, com o grande diferencial sendo o uso inteligente e cuidadoso desse artifício, sem deixar que a série como um todo se baseie nelas como uma muleta.
Twovix, que, não coincidentemente, referencia brevemente o inédito e refrescante crossover de Lower Decks com Strange New Worlds (quero ver o contrário acontecer agora!) é um daqueles episódios que se vale pesadamente de conexões com o passado de Star Trek, muito na linha de Grounded e Hear All, Trust Nothing, da temporada anterior, só para citar os mais recentes. A bola da vez é a série Star Trek: Voyager, que foi ao ar entre 1995 e 2001 e que contava a história da nave em questão que, comandada pela capitã Kathryn Janeway, lutou anos para retornar do Quadrante Delta. No episódio, a Cerritos é secretamente ordenada a escoltar nada menos do que a própria Voyager de volta à Terra, agora não mais uma nave da Federação, mas sim como um museu sob a cuidadosa curadoria do rigeliano Beljo Tweekle (Andy Richter), o que, obviamente, torna-se imediatamente terreno fértil para que a série homenageada seja o centro das atenções.
E, para fazer isso, o episódio destila Voyager à, talvez, sua mais marcante essência, que é o quanto as desventuras da nave titular foram bizarras mesmo considerando as então já bem estabelecidas bizarrices da franquia. A importância histórica da Voyager dentro do universo em que se insere é usada como palco para que o ágil texto escrito pelo próprio showrunner extraia um sem-número de citações e referências que, como sempre, são completamente autoconscientes, e, ao mesmo tempo, replique a fusão de dois personagens – a Dra. T’Ana e o engenheiro Billups – em um só, T’illups, como aconteceu com Tuvok e Neelix, formando Tuvix (daí o título do episódio que faz um trocadilho com “two” ou “dois”). Esse é o trampolim narrativo para que, de um lado, a capitã Carol Freeman tenha que lidar com T’illups fazendo de tudo para fundir outros membros da tripulação de maneira a evitar que a solução original para o problema dada por Janeway (matá-lo) seja replicada, cabendo a Tendi e T’Lyn unirem-se para salvar o dia e, de outro, o imediato Jack Ransom, na Voyager, precisando salvar a nave de um macrovírus Tak Takiano, algo que acaba ficando nas mãos de Boimler que, por seu turno, basicamente congela quando o próprio Ransom diz que ele está próximo de uma promoção.
Quando o uso generoso de referências é casado com uma construção narrativa primorosa, temos o melhor dos dois mundos, pois uma coisa passa a não depender da outra, mas, quando o espectador consegue fazer as conexões, tudo fica ainda melhor. O pano de fundo – a promoção de Boimler que acaba sendo replicada na promoção também de Tendi e de Mariner, deixando apenas Rutherford de fora – é o caldo que realmente importa aqui, pois cria uma interessante encruzilhada para a série. Afinal, para que seus protagonistas se desenvolvam, é natural que eles galguem a escada dos cargos da Federação, mas isso, obviamente, retira deles a característica de recrutas e, portanto, de lower deckers, o que trai o espírito da série. Mas McMahan consegue alcançar um bom equilíbrio pelo menos nesse começo, além de aproveitar para introduzir uma ameaça aparentemente nova que destrói uma nave Klingon no epílogo, ajudando a preparar o terreno para uma temporada que já começa mostrando a que veio.
4X02
I Have No Bones Yet I Must Flee
Sem perder o ritmo, o segundo episódio da 4ª temporada de Lower Decks abraça a temática das promoções de três dos quatro protagonistas ao final de Twovix e constrói toda uma narrativa ao redor disso, ou melhor, duas narrativas já que, como de costume, duas missões separadas são abordadas. Na primeira delas Mariner entreouve Ransom falando mal dela e parte para fazer de tudo para ser novamente rebaixada, inclusive encarar uma missão em um zoológico espacial com roupa de ginástica, e, na outra, Boimler precisa encarar seu novo aposento ao lado de uma nacelle que joga todo o brilho por sua janela, com Rutherford lutando para ganhar sua própria promoção de forma a não perder seus amigos como ele acha que acontecerá, para desespero de Tendi.
Com as duas linhas narrativas conversando entre si, o episódio consegue ter uma dinâmica ainda melhor do que a do anterior, com direito à história de Mariner conter diversos hilários momentos com ela agindo da pior maneira possível diante de Ransom e de um cadete que não entende o que está acontecendo, além de uma criatura fofíssima chamada de Moopsy (confesso que não sei se é seu nome ou sua espécie) que, porém, “bebe” ossos (sim, “bebe”), tornando-se uma ameaça maior do que o 8º Passageiro, em Alien. Entre Rutherford exasperado por toda sua grande invenção incremental para a Cerritos ser barrada pela de outro cadete cientista que constantemente impressiona Billups e Mariner não conseguindo tirar Ransom do sério, com Boimler tendo que dormir ou em quarto que fica entre dois holodecks barulhentos (genial!) ou, como um sem-teto, em um tubo Jefferies, I Have No Bones Yet I Must Flee consegue ser um dos mais engraçados capítulos da saga dos lower deckers.
Da mesma maneira, o episódio continua trabalhando o que parece ser a grande ameaça da temporada – ou pelo menos de parte dela – com um interessantemente complexo cold open abordando intrigas variadas em uma nave romulana que resultam em sua destruição pela mesma nave silenciosa e misteriosa que apareceu no episódio inaugural destruindo uma nave klingon. Claro que “destruição” talvez não seja a melhor palavra a ser usada aqui, pois realmente não sabemos nada do que está acontecendo e os tripulantes podem estar sendo teletransportados para alguns lugar, com apenas os destroços das naves permanecendo no frio do espaço.
E, com isso, Lower Decks vem conseguindo unir a estrutura clássica de episódios autocontidos de séries cômicas animadas com a estrutura serializada de séries modernas, em um equilíbrio difícil de ser mantido, mas que, pelo menos nessa dobradinha inicial, o showrunner tirou de letra tanto no aspecto exógeno da ameaça misteriosa quanto no aspecto endógeno da discussão sobre as patentes dos protagonistas. Tomara que continue assim!
Star Trek: Lower Decks – 4X01 e 4X02: Twovix / I Have No Bones Yet I Must Flee (EUA, 07 de setembro de 2023)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Barry J. Kelly, Jason Zurek (4X01); Megan Lloyd (4X02)
Roteiro: Mike McMahan (4X01); Aaron Burdette (4X02)
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Paul Scheer, Gabrielle Ruiz
Duração: 24 min. (4X01), 23 min. (4X02)