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Crítica | Delicado, de Nelson Rodrigues

Violência familiar, homofobia e crítica ao casamento neste que é um dos melhores contos da coletânea A Vida Como Ela É.

por Leonardo Campos
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Expoente de uma poderosa dramaturgia e autor de contos fascinantes, Nelson Rodrigues é um dos grandes nomes da literatura moderno no Brasil. Extraídas as suas contradições políticas incompatíveis com seu posicionamento no campo da produção ficcional, o polêmico escritor deixou uma vasta obra com algumas composições ainda muito atuais em suas abordagens. Foi um contumaz crítico dos costumes e ácido com algumas instituições estabelecidas em nossa sociedade, em especial, o casamento e as hipocrisias em torno do comportamento humano. Por meio de figuras ficcionais esféricas, mergulhadas em situações comuns do cotidiano, este mordaz analisador de perfis estabeleceu, ao longo de suas composições, personagens acossados entre os seus desejos mais profundos e os rígidos códigos sociais responsáveis por instaurar proibições, colocando em cenas catarses intensas. Delicado, um dos contos da coletânea A Vida Como Ela É, engloba uma destas pequenas histórias trágicas e ainda muito contemporâneas.

O conto segue uma trajetória para discutirmos dois temas fortes, ainda muito em voga, principalmente nesta nossa era de reflexão: a homofobia e o suicídio, tópicos que aqui não são pensados separadamente, mas em consonância. Em tempos de campanhas como Setembro Amarelo e debates constantes sobre conscientização acerca das opressões sociais que levam indivíduos a aniquilar as suas próprias vidas, o conto em questão pode ser pensado, inclusive, como um recurso didático, fincado em seu potencial pedagógico, sem deixar de ter as qualidades esperadas por aqueles que mergulham na leitura em seus processos diletantes. Na breve, mas impactante história, conhecemos o universo de Eusebiozinho. Ele é uma figura da década de 1950, isto é, um ser humano diferente que cresce em meio às imposições do casamento como regra básica da evolução social de um homem que “precisava ser macho e estabelecer família”.

Qualquer um que saia desse esquema gerava desconfiança e sofria estigmas de uma sociedade calcada na homofobia, com numerosos casamentos fracassados, mas sustentados pela imagem pública do casal, mesmo que interiormente a situação sentimental e a saúde mental dos envolvidos fosse um fiasco. Apesar dos avanços intelectuais e das pesquisas, questões acerca dos estudos psicológicos era coisa pra rico ou para gente “fresca”. A vida, tal como ela é, precisava ser enfrentada com os seus desafios e, se Eusebiozinho veio homem, era preciso perpetuar o seu papel, ao menos conforme os ditames da época. Mas o jovem não consegue sustentar esta perspectiva. Era uma imposição que ia além de seus desejos. Oriundo de uma família onde o casal já havia gerado sete filhas, o moço surge da última tentativa do pai em ter um filho homem. A força dramática do conto é tão forte que, logo após o nascimento da criança, o seu pai falece de um infarto fulminante enquanto almoçava, 48 horas após a chegada do personagem. Como ele mesmo reforça, “agora que meu filho já nasceu eu posso partir”.

Com toda ironia fina comum aos contos de Nelson Rodrigues, o patriarca parte e o moço é criado naquilo que o narrador chama de uma bastilha de mulheres. Sua mãe, inclusive, sempre o incentiva a brincar com as meninas, “pois meninos falam palavrões feios”. Assim, Eusebiozinho não pensa em namorada com a chegada da adolescência e a proximidade da vida adulta. As coisas mudam, por sua vez, durante uma visita do tio, o protótipo do macho alfa viril que estranha o comportamento delicado demais do garoto e, assim, desafia a irmã a achar uma namorada para o rapaz, tendo em vista evitar um destino indesejado para a família. Nesta investigação constante, acham a moça ideal: Iracema. Logo, ela é apresentada ao jovem que não demonstra traquejo para lidar com os desejos da jovem. O casamento, por sua vez, é apressado. Todos anseiam em ver a única figura masculina da família no altar.

Eusebiozinho, por sua vez, se apresenta no conto como um personagem flutuante. É doloroso ver como o rapaz sequer compreende assertivamente tudo que está acontecendo tão rapidamente ao seu redor. Aqui, as rubricas comuns aos textos teatrais de Nelson Rodrigues ganham uma dimensão interessante. Há um tom de suspense e, para quem não conhece a história pela versão eficiente produzida pela Rede Globo em 1996, na série A Vida Como Ela É, exibida semanalmente durante o Fantástico, o final é catártico e surpreendente. O moço, obcecado pelo casamento apenas pelo viés do vestido de noiva, não suporta a condição que lhe é imposta e comete suicídio trajando a peça, um dos grandes símbolos da dramaturgia do autor. Quem o encontra é a sua mãe, estarrecida com o único filho homem pendurado na escada, com um bilhete nos pés que dizia: “quero ser enterrado assim”. Neste desfecho, Rodrigues delineia os desdobramentos da violência no âmbito familiar, além de transformar um dos principais marcos simbólicos da poderosa instituição chamada casamento, em algo mórbido e ultrajante.

Ao lado de Futura Sogra, A Dama do Lotação, Gêmeas e Diabólica, o conto Delicado compõe o panorama de contos ainda muito relevantes de uma coletânea ousada e de escrita intensa.

Delicado — Brasil, 1958
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Nova Fronteira
5 páginas

 

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