O princípio do filme de Belmonte é aterrorizante: uma mulher enterra um corpo, depois joga sua suposta filha dentro de um carro aos berros enquanto ela dirige perigosamente pela estrada em um aparente ato suicida e, ao mesmo tempo, homicida. É assim que Uma Família Feliz entrega seus primeiros contornos dramáticos. Findado esse caos, voltamos no tempo, mas sem saber quanto e nem para quando. Nesses primeiros planos, a mulher, agora conhecida como Eva, está grávida e acompanhada de seu marido Vicente no aniversário de suas filhas gêmeas. Nada parece impedir essa família de viver um eterno sonho. Boa vida financeira, trabalho dos sonhos e, sobretudo, um núcleo familiar feliz. Os primeiros problemas, então, são aqueles que não se podem controlar: uma das filhas possui uma grave doença e necessita de acompanhamento médico constante. A partir daqui, as coisas começam a piorar.
José Eduardo Belmonte faz questão de mostrar a casa de Eva e Vicente como um palacete: comida aos montes, móveis de mármore, prataria fina, tudo que se pode sonhar. Essa perfeição, no entanto, não se reflete exatamente na dinâmica do casal. Vicente, quem traz mais aporte financeiro para a família, diz que o trabalho de Eva, na verdade, não passa de “brincar de boneca” – a mulher constrói bonecas altamente realistas, beirando o assustador. Os dois vivem implicando um com o outro, ainda mais quando nasce seu mais novo filho, Lucas, e ele não estabelece uma relação de tanto afeto com a mãe; ele parece sempre preferir o afago da figura paterna. Desde então, Eva muda completamente seu jeito de ser e até mesmo sua fisionomia: antes muito decidida e com um caminhar semelhante ao de uma modelo, ela, agora, parece rastejar pelos lugares, como se a questão com seu filho sugasse toda sua energia vital. Noites mal dormidas e muito cansaço fazem ela ser menos confiável com seu mais novo recém nascido em mãos.
Além de todo esse peso psicológico colocado em seus ombros, o estranho aparecimento de machucados nas duas irmãs e em Lucas fazem Eva questionar sua própria sanidade e a confiança em seu marido. Ela está certa de que não fez nada com as crianças, mas Vicente parece reticente. Então, em uma reunião na escola, as irmãs Angela e Sara dizem que a responsável pelos machucados é, de fato, Eva. Em um ato narrativo muito similar à A Caça, de Thomas Vinterberg, vemos a protagonista se tornar a pária do bairro, sendo hostilizada por todos. Vicente, já sem confiança na própria esposa, expulsa-a de casa e, então, ela passa a viver na antiga casa de seus pais. Lá, entrando em uma paranóia à O Bebê de Rosemary, Eva desenvolve uma narrativa de que, na verdade, Vicente abusa das crianças em segredo. Esgueirando-se da segurança do bairro onde vivia, a personagem de Grazi Massafera invade sua antiga casa e instala inúmeras câmeras de segurança.
Nada nas imagens é capaz de provar a teoria de Eva. Aqui, sua sanidade parece cada vez mais distante do ideal. Se o início do filme nos mostra uma família e personagens marcados pela pompa, nessa altura do filme Eva parece movida pelo ódio, realizando ações quase sem pensar. A câmera, quando dedicada à protagonista, é sufocante, entregando closes que destacam ainda mais a atuação impecável de Grazi Massafera. Seu trabalho corporal é absolutamente fantástico e isso é valorizado pela direção: sequências envolvendo a personagem em seu ápice catártico praticamente entregam a câmera para a atriz, deixando ela fazer sua mágica. Em um estado terminal de paranoia, nem mais o espectador é capaz de acreditar na personagem. Como no filme de Polanski antes citado, se todo o entorno de Eva já não acredita em sua palavra, por que o público deveria?
A revelação final do segredo de quem realmente agredia os filhos de Eva e Vicente, não será exposta aqui por pedido do próprio diretor ao subir no palco do festival. Contudo, cabem algumas notas gerais sobre a potência não apenas narrativa, mas formal. A descoberta do agressor é filmada de um modo cínico, frio, distante. Os olhares opacos, as reações boquiabertas dos personagens e a violência da cena são ímpares, lembrando até a banalização da violência dos filmes do diretor austríaco Michael Haneke. O plot twist não funciona apenas como instrumento narrativo em Uma Família Feliz: serve, também, para a exposição de uma encenação impecável de José Eduardo Belmonte. A expressão indiferente do agressor ao ver sua própria violência possui requintes de crueldade, esboçando até mesmo um sorriso. E o diretor constrói isso da melhor maneira possível, com planos sem movimento e com uma câmera à nível dos olhos dos atores. Por breves momentos, é quase como se isso fosse desdramatizado. Grazi Massafera, presente na cena, apresenta o completo oposto do antagonista: nela reside o choque, a incredulidade, o pavor. Do outro lado, um prazer sádico, nada humano.
O filme de José Eduardo Belmonte funciona muito bem quando se assume como thriller – como o diretor categorizou seu longa. O filme, beirando duas horas de duração, parece perder seu precioso tempo em pequenos conflitos que não servem nem como tempo morto ou ações do acaso e tampouco possuem tempo de tela para se tornarem elemento dramático marcante. O segundo arco narrativo é, em certos momentos, desinteressante, sendo salvo, apenas, pela entrega absoluta de Grazi Massafera em cada uma das cenas. A cena pós-créditos, parece ter sido construída para explorar mais ainda o cinismo da sequência final, mas não possui nada de sua força. Uma Família Feliz é um bom filme, com um trajeto tortuoso, mas cujo a construção de seu final faz valer a pena a espera.
Uma Família Feliz – Brasil, 2023
Direção: José Eduardo Belmonte
Roteiro: Raphael Montes
Elenco: Reynaldo Gianecchini, Grazi Massafera, Luiza Antunes, Juliana Bim
Duração: 115 min.