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Crítica | Mais Pesado é o Céu

Quando duas almas livres se conectam.

por Frederico Franco
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Assim como em Vidas Secas, o sertão é um personagem. A natureza se impõe perante os personagens: eles são reféns do meio ambiente árido. Sede, fome, dor, incerteza. Tudo isso pauta a realidade de ambos Antônio e Tereza. Os dois, por enquanto separados, possuem destinos incertos e planos imperfeitos. O acaso, no entanto, fez questão de unir os dois. Próximo àquele que um dia já foi um rio, Tereza encontra uma criança de colo perdida. Sem pensar duas vezes, ela acolhe a criança em seus braços. Depois de caminhar sem rumo pelo imponente sertão, Antônio vê Tereza com o bebê e resolve acompanhá-los em busca de comida, água e descanso. O que nenhum deles planejava é que, dentro dessas circunstâncias, o destino iria os unir com laços fortes, tornando-os quase inseparáveis.

Estamos aqui diante de dois espíritos livres, errantes, transeuntes. Caminhar faz parte de suas essências. São duas pessoas em busca de alguma coisa – mas nem eles próprios sabem o que desejam. Sua natureza é andar. A fome, literal e metafórica, é o que mantém ambos em movimento. São famélicos que exploram bem a realidade de uma parcela da população – o que dialoga bem com o que Glauber Rocha pensa sobre representação da fome. O filme está apoiado em um realismo que tem, sobretudo, um compromisso com a verdade. Por mais duras que sejam algumas cenas, a câmera basicamente afirma que a realidade dos dois protagonistas é dura, triste e violenta. São raros os momentos de alívio tanto para o espectador quanto para os personagens. O surgimento da personagem Fátima, que de certa forma, adota o casal, é um oásis de ternura em meio à crueldade do mundo construído por Petrus Cariry. Tudo, desde à natureza, até à violência humana, massacra Antônio e Tereza sem o menor pudor. Abuso moral, trabalho análogo à escravidão, abuso sexual: a realidade pesa toneldas nos ombros dos protagonistas. 

Mais Pesado é o Céu pode ser considerado um road movie de características brasileiras: basicamente viagens físicas e espirituais do terceiro mundo. Os personagens passam por lugares e também atravessam metamorfoses pessoais marcadas pelo deslocamento. As transformações de alma, no entanto, são cicatrizes, feridas abertas que não aparentam deixar de sangrar. Todas suas experiências são marcadas pela dor. O realismo de Cariry é bruto, opressor. Sua imagem beira o sinestésico: quase somos capazes de sentir o calor escaldante do sertão e a fadiga física e mental de Antônio e Tereza. Contudo, nos deparamos com um road movie que, próximo de sua metade, estaciona. Os personagens, agora, ocupam uma pequena casa abandonada. Lá, sua relação se estreita, formando uma espécie de família. A mulher é quem trabalha enquanto o homem fica em casa tomando conta do bebê – que até então não possui nome. O trabalho que Tereza encontra é a prostituição; no entanto, não lhe traz orgulho e ela deixa claro para si mesma: é tudo uma questão de sobreviver. 

A casa na qual o casal fica alojado, passa por transformações à medida em que os protagonistas assumem mais funções de família. Ao chegarem no casebre, encontra um não lugar: alguns retratos antigos, janelas fechadas, sujeira por todos os cantos: a mise en scène construída pelo diretor indica com todos seus elementos que aquela construção não tem alma, não pertence a ninguém. Contudo, quanto mais os protagonistas ali se estabelecem, mais o alojamento toma forma de casa. Aos poucos, as janelas vão se abrindo, deixando um pouco de luz entrar; depois, os quadros antigos são retirados e uma cama é montada. Quando percebemos, até mesmo um fogão e uma banheira são improvisados por Antonio. O bebê, agora chamado de Miguel, já não chora tanto por fome: Tereza, através da prostituição, consegue adquirir recursos mínimos para manter a criança saudável. Um comentário sobre Tereza. Sua busca por outro emprego sempre teve como empecilho o salário: em dado momento, ao negar um trabalho de trezentos reais ao mês, afirma que “isso não é trabalho, é escravidão“. Precisando sobreviver e manter Miguel vivo, continua realizando programas para caminhoneiros e outros viajantes. 

Chegando próximos ao fim do filme, Antônio e Tereza abandonam o casebre e vão para a beira da estrada em busca de dinheiro ou carona. Para convencer os viajantes a aceitarem todos os três em seu automóvel, Tereza oferece seus serviços como prostituta. É em um desses carros que se dá um encontro derradeiro. Tereza sofre abuso sexual de um dos clientes: ela grita por socorro de Antonio, mas ele não a ouve. Então, a protagonista encontra uma espécie de chave de fenda e golpeia o abusador. A cena é de um realismo tão visceral, que foi difícil manter os olhos na tela. O som, aterrorizante, aliado à imagem brutal, compõem uma estética de revirar o estômago. Não é uma sequência longa, mas parece durar uma eternidade. Com sorte, Tereza consegue nocautear o homem. Ela, então, busca Miguel dos braços de Antônio, assume a direção do carro e foge, deixando seu companheiro. Chega-se à catarse final. Antônio chega próximo do antagonista, recolhe a ferramenta e destrói o crânio do homem. Ele golpeia, golpeia e não parece ter intenção alguma em parar. Sangue espirra em seu rosto, seus ficam olhos vidrados e um grito animalesco surge como uma última descarga de energia de um homem tão terno. Diferente da violência sofrida por Tereza, essa reação de Antônio é quase um alívio. Essa violência reativa, famélica, só acontece em decorrência da violência do opressor. Antônio, aqui, deixa escapar uma raiva construída por anos e mais anos de assédio moral e descaso da sociedade. O protagonista, coberto de sangue, não é visto como um monstro: é vítima.

Mais Pesado é o Céu – Brasil, 2023
Direção: Petrus Cariry
Roteiro: Petrus Cariry, Firmino Holanda, Rosemberg Cariry
Elenco: Matheus Nachtergaele, Ana Luiza Rios, Sílvia Buarque, Danny Barbosa, Buda Lira, Magno Carvalho, Galba Nogueira, Pedro Domingues, Marcos Duarte
Duração: 99 min.

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