- Há spoilers. Leiam, aqui, a crítica da temporada anterior.
Teria sido muito fácil cair na tentação e transformar Warrior em uma série limitada a seus atrativos mais evidentes, ou seja, lutas variadas, violência extrema e sexo constante. Jonathan Tropper mesmo fez isso em Banshee, com resultado cansativo que nunca realmente saiu daquela incômoda linha mediana. Mas, já em sua primeira temporada, Warrior mostrou ser muito mais do que apenas o que está na superfície, funcionando não só como um recorte de uma época específica nos Estados Unidos da segunda metade do século XIX que lida com temas muito atuais como preconceito, xenofobia, imigração, direitos trabalhistas, mas também como um cuidadoso e profundo estudo de personagens ricos, complexos e de difícil rotulação.
Na segunda temporada, Tropper faz o que poucas séries realmente conseguem fazer, que é criar uma sensação fluida, lógica e, muito sinceramente, perfeita de continuidade narrativa entre temporadas. Sim, o ano inaugural lidou com arco completos para grande parte dos personagens e o segundo começa outros, com o status quo alterado em São Francisco, mas, se olharmos com um olhar realmente clínico, perceberemos que há um cuidado enorme em fazer com que o segundo conjunto de 10 episódios decorra naturalmente do primeiro, como se estivéssemos assistindo uma temporada de 20 episódios que realmente tem assuntos a abordar e que não existem apenas por existir ou “forçam” sua existência como tantas séries por aí. Há, em resumo, uma naturalidade muito grande nessa transição entre temporadas, algo que é raro no vasto mundo das séries de TV.
E, da mesma forma que acontece na primeira temporada, a saga de Ah Sahm (Andrew Koji), que chega da China para procurar sua irmã mais velha somente para descobrir que ela é uma ambiciosa e inclemente esposa do chefão de uma tong que se torna ela mesmo a poderosa chefona, até pode ser a principal em termos técnicos, mas, em termos narrativos, ela é tão interessante quanto as de uma robusta série de outros personagens, inclusive, claro, de sua irmã Mai Ling (Dianne Doan), dos policiais Bill “Big Bill” O’Hara (Kieran Bew) e Richard Henry Lee (Tom Weston-Jones), da cafetina Ah Toy (Olivia Cheng) e assim por diante. Tenho consciência de que estou me repetindo, mas é fascinante notar como cada personagem tem sua própria história e sua própria complexidade que deságua em suas ações que influenciam o caminho que a narrativa toma, sem que nada seja realmente telegrafado ou, ao revés, tirado da cartola por roteiros simplistas, que se contentam em fazer o básico.
Além disso, o zelo narrativo é grande o suficiente para impedir maniqueísmos tanto quanto humanamente possível, algo que fica particularmente evidente neste segundo ano, com Ah Sahm, depois de perder a luta para Li Yong (Joe Taslim) e perceber que sua irmã autorizou sua morte durante o torneio, mergulhando em uma espiral de vingança contra ela que o leva a inteligentemente manipular Joven Jun (Jason Tobin) a tomar o poder da tong Hop Wei de seu pai, tudo para que ele possa levar o conflito já efervescente às vias de fato. Nessa sua sana silenciosa, Ah Sahm muda muito, primeiro ajudando no lado justiceiro de Ah Toy, mas em seguida ficando obcecado em encontrar um rumo para sua vida, um efetivo propósito para sua existência agora que ele percebeu que sua família não mais existe. E, no lugar de entregar respostas fáceis, a temporada, muito ao contrário, dificulta tudo para o protagonista, cada vez mais distanciando do rótulo de “herói” e mergulhando-o em uma jornada sensivelmente mais sombria, mesmo que, ao final, ele seja visto pelos habitantes de Chinatown como essa figura salvadora, em uma reviravolta muito interessante e que só alimenta o fogo das incertezas de Ah Sahm.
Falando em jornada sombria, como não abordar Big Bill e Lee que vivem, na segunda temporada, as consequências diretas dos eventos da primeira no mesmo estilo da abordagem de Ah Sahm, ou seja, sem que seja feito esforço para dourar a pílula, por assim dizer. Bill acaba a primeira temporada como cobrador da tong de origem mongol Fung Hai e ele somente consegue se livrar de seus serviços quando a própria tong é desmantelada e enfraquecida por ele e Li Yong em uma estratégia corrupta de matar dois coelhos com uma cajadada só. Confesso que fiquei surpreso com o vício de Lee em láudano depois de seu espancamento pelos Fung Hai e a recusa dos roteiros em deixar essa linha narrativa de lado ou mesmo de suavizar a situação, com uma “cura fácil” que levasse à volta por cima do personagem.
No lado puramente político, o crescimento da proeminência de Walter Franklin Buckley (Langley Kirkwood) na história como um dos grandes manipuladores nas sombras com seus contatos escusos com Mai Ling para incitar a guerra entre as tongs é muito bem-vindo, com o ator revelando de vez o lado quase que psicótico e totalmente sinistro do personagem quando ele decide esfaquear-se para neutralizar a ameaça representada por Penelope “Penny” Blake (Joanna Vanderham), levando-a a ser internada em um sanatório. Fica evidente que Buckley está disposto a tudo para conseguir o que quer e, considerando sua posição de ainda mais poder na política de São Francisco, agora como prefeito, além de sua xenofobia virulenta, estão presentes todos os predicados para ele tornar-se o grande vilão de uma série basicamente tomada de grandes vilões.
Como se não bastasse o elenco vasto cujos desenvolvimentos são impossíveis de abordar em uma crítica, diversos novos personagens são introduzidos na segunda temporada, alguns deles com mais relevância e eficiência do que outros, naturalmente. Uma das mais importantes, mas também mais enervantes é Sophie Mercer (Céline Buckens), irmã mais nova de Penny que gosta de dar uma de rica rebelde com semblante de engajamento político ao relacionar-se com o sindicalista irlandês mafioso Dylan Leary (Dean Jagger) e ao ajudá-lo a explodir a fábrica da própria irmã em uma demonstração de absoluta imaturidade e irresponsabilidade. A inclusão da personagem, que fora mencionada na primeira temporada, porém, é uma forma interessante de se reunir núcleos narrativos, de criar a oportunidade para que Leary ganhe outras facetas ainda mais complexas e de contribuir para o explosivo final em que vemos Chinatown ser invadida pelos irlandeses e Penny ser internada em um sanatório.
Menos interessante é a chegada de Nellie Davenport (Miranda Raison), viúva rica que faz de maneira não-violenta aquilo que Ah Toy faz na ponta de sua espada e abrindo as portas de seu bordel: salva mulheres chinesas da escravidão sexual levando-as para seu idílico vinhedo em Sonoma onde todas parecem viver em uma comunidade utópica. Mesmo que a personagem também sirva de ponte entre núcleos em razão de seu relacionamento amoroso com Ah Toy, ela, para mim, parece ser a encarnação da suprema conveniência narrativa, a mulher branca rica salvadora dos fracos e oprimidos que chega para ensinar à cafetina selvagem como fazer o certo. É, diria, a personagem mais fora de compasso da série inteira até agora e, muito sinceramente, não sei como o futuro da série lidará com ela. Eu só espero que ela ganhe o devido desenvolvimento para além desse verniz um tanto quanto presunçoso que a produção acabou dando para ela.
Não posso esquecer da ótima mexicana Rosalita Vega (Maria-Elena Laas) que serve ao mesmo tempo de filósofa provocadora e interesse amoroso de Ah Sahm, além de permitir o contato dele e do Jovem Jun à comunidade afro americana e ao ópio made in USA que eles passam a comprar apesar das ordens do Pai Jun. Minha única reclamação sobre a personagem é que ela tem um fim rápido demais, ainda que eu goste muito de sua história paralela de vingança que acontece ao longo da temporada e chega a um mais do que satisfatório – ainda que trágico – encerramento. E, claro, há o jovem e simpático Hong (Chen Tang) que chega da China em uma “recarga” de minions contratada por Pai Jun, mas que logo passa a formar uma trinca com Jovem Jun e Ah Sahn e a revelar-se como o primeiro personagem masculino gay da série, algo que é feito de maneira muito elegante e natural. Mesmo mostrando-se um grande lutador, porém, falta algo mais ao personagem que o retire da mera função de ser o lado mais cômico dos três principais membros da tong Hop Wei.
Levemente inferior ao primeiro ano, a segunda temporada de Warrior continua a mostrar a intenção firme e forte de Jonathan Tropper de entregar um épico de artes marciais com fundo histórico que tem tudo para se tornar um dos grandes expoentes desse gênero outrora mais explorado em produções americanas. Quem sabe a série, se a qualidade se mantiver por mais algumas temporadas, não consegue reviver essa febre setentista que tomou de assalto o Ocidente, mas que acabou tão rapidamente quanto surgiu?
Warrior – 2ª Temporada (EUA, de 20 de outubro a 04 de dezembro de 2020)
Desenvolvimento e showrunner: Jonathan Tropper (baseado em ideias e escritos de Bruce Lee)
Direção: Jonathan Tropper, David Petrarca, Loni Peristere, Dustin Nguyen, Omar Madha, Dennie Gordon
Roteiro: Jonathan Tropper, Brad Caleb Kane, Evan Endicott, Josh Stoddard, Kenneth Lin
Elenco: Andrew Koji, Olivia Cheng, Jason Tobin, Dianne Doan, Kieran Bew, Dean Jagger, Joanna Vanderham, Tom Weston-Jones, Hoon Lee, Langley Kirkwood, Christian McKay, Perry Yung, Joe Taslim, Kenneth Fok, Emily Child, Brendan Sean Murray, Christiaan Schoombie, C. S. Lee, Erica Wessels, Andrew Stock, Rachel Colwell, Patrick Baladi, Dustin Nguyen, Céline Buckens, André Jacobs, Miranda Raison, Chen Tang, Maria-Elena Laas, Frank Rautenbach, Gaosi Raditholo, Nat Ramabulana, David Butler
Duração: 497 min. (10 episódios)