Usualmente, tenho ignorado os lançamentos de algoritmo da Netflix, que tem fortificado seu conteúdo com produções de massa cada vez mais burras e superficiais. Ainda assim, fiquei curioso com o marketing acatado de Clonaram Tyrone!, que não ganhou a devida atenção do streaming, mas que alertou meu interesse com sua estilização de blaxploitation e premissa de ficção científica. Parte da onda recente de obras absurdas que discutem racismo nos EUA como Corra!, Atlanta, Sorry to Bother You, entre tantas outras, o longa-metragem nos apresenta Fontaine (John Boyega), um traficante de uma comunidade conhecida como Glen, que, junto do cafetão Slick Charles (Jamie Foxx) e da prostituta Yo-Yo (Teyonah Parris), acabam descobrindo uma conspiração governamental contra negros.
Em termos estéticos, o filme é um pouco aquém do resgate do blaxploitation, com uma fotografia granulada e meio neon que não encanta e uma ambientação pouco expressiva, mas os figurinos, os carros, os diálogos e a trilha sonora ajudam a emular o subgênero de exageros visuais e verbais, com destaque particular para a composição do personagem Slick Charles. O cineasta Juel Taylor também faz um trabalho mais acanhado e paciente por trás das câmeras, sem muitas excentricidades com ângulos de câmera e o espaço cênico, com enquadramentos até mais fechados – o filme tem uma vibe um tanto prisional e claustrofóbica, então de certa forma faz sentido. No entanto, o que mais destaco estilisticamente é o aspecto diegético fora do tempo da obra, que não se enquadra em uma época específica, com visuais que mesclam os anos 60/70 com a contemporaneidade, falta de uso de smartphones ou aparelhos tecnológicos mais avançados, e um laboratório subterrâneo bastante retrofuturístico. Estamos em 1978, 2008 ou 2018? É deliciosamente difícil de saber.
Agora tematicamente falando, a produção abre diversas discussões. Tocando em temas como racismo estrutural, gentrificação, apropriação e homogeneização cultural, capitalismo, “escravidão mental”, capitalização ideológica e por aí vai, o roteiro satírico pesa a mão no comentário social. Os exageros do blaxploitation ajudam a suavizar a densidade da história com uma boa dose de humor, mas também auxilia a satirizar as críticas do texto e diluir o nível de exposição para nada soar muito óbvio, por mais que sutileza não seja a melhor característica. Interessante, também, como a produção sabe diferenciar pele/cor de cultura, o que infelizmente muitas obras estúpidas sobre racismo não conseguem articular de forma eloquente, sendo importante ressaltar que a cultura é especificamente estadunidense, então não devemos generalizar, pois os temas são universais, mas não os costumes e cenários retratados.
Na trajetória narrativa, a produção mistura diversos gêneros para contar a investigação do trio principal. Como já abordei, temos a inspiração no blaxploitation, mas a produção bebe da fonte da ficção científica absurdista, do thriller de conspiração, do horror social à la Jordan Peele, da paranoia sessentista com o governo americano e, claro, da sátira. Muitas dessas inspirações e críticas são um tanto explícitas demais ou muito objetivas, mas a produção tem personalidade e criatividade para nos carregar pela salada de Juel Taylor, com destaque especial para a química e carisma dos co-protagonistas, que sabem trabalhar bem com as caricaturas e estereótipos exigidos – Boyega faz um ótimo anti-herói estoico, Parris é pura energia e Foxx arrebenta com seu excêntrico personagem. O terceiro ato, porém, decepciona bastante, com uma condução narrativa corrida e sem muita ideia de como fechar a história com um impacto, por mais que uma reviravolta final traga uma ambiguidade curiosa que remete a uma frase inicial de Slick Charles: “Black-on-Black crime“.
Clonaram Tyrone! é uma produção problemática, sem dúvidas, mas também sabe ironizar, provocar e colocar a audiência para pensar, algo cada vez mais escasso nos catálogos de streamings. Em sua primeira aventura num longa-metragem, Juel Taylor chuta a porta cinematográfica com muita coragem e audácia, condensando diversos temas e gêneros para criar um universo criativo em torno de uma história cheia de discursos e comentários sociais importantes. Ajuda bastante ter três intérpretes tão divertidos para nos carregar por essa jornada maluca.
Clonaram Tyrone! (They Cloned Tyrone) – EUA, 21 de julho de 2023
Diretor: Juel Taylor
Roteiro: Juel Taylor, Tony Rettenmaier
Elenco: John Boyega, Teyonah Parris, Jamie Foxx, Kiefer Sutherland
Duração: 124 min.