Uma narrativa cheia de sedução, tom sanguinolento, atmosfera macabra e erotismo lésbico. Imagina uma história assim lida pela sociedade letrada do século XIX? Pois bem, se o tema ainda hoje gera polêmica e hipocrisia, precisamos pensar o seu impacto para a época em questão. Carmilla: A Vampira de Karnstein, do escritor Sheridan Le Fanu, publicado em 1872 na revista Dark Blue, foi uma das inspirações para o surgimento de outro vampiro famoso da época, o Conde Drácula, em 1897. Implicito, o erotismo dialoga com o horror sobrenatural proveniente da maldição de uma família destruída, numa história carregada por uma presença sinistra, almas segregadas, em pequenos capítulos dinâmicos que trabalham bem o suspense em prol do desenvolvimento da narrativa. Nas composições literárias de Le Fanu, as paisagens são dotadas de mistério e situações que não podem ser explicadas pela lógica, recursos que não são nada diferentes em tudo que é empregado nesta breve, mas densa saga de horror e morte.
No conto, sabemos que Laura é visitada por uma presença estranha quando tinha seis anos de idade. A construção desta passagem é arrepiante, ideal para uma boa adaptação para o cinema ou série televisiva, haja vista o tom estabelecido. Nas mãos dos realizadores certos, renderia uma arrepiante narrativa visual de horror. O tempo avança e, aos 18 anos, a personagem espera a chegada do General Spielsdorf, juntamente com a sua sobrinha Bherta Rheinfeldt, situação que traz mau agouro, pois a menina morre na viagem sob circunstâncias muito estranhas. Na mesma ocasião, uma carruagem se acidenta nas proximidades, trazendo Carmilla como passageira, uma enigmática figura que mudará a forma como Laura enxerga o seu cotidiano. Elas criam fortes laços e logo uma amizade se finca, num tom cósmico onde até mesmo os sonhos são compartilhados. Localizada no vilarejo de Estíria, na Áustria, o conto é narrado pelo Dr. Hesse Lius, num tom verídico que pretende aplacar a história com verossimilhança e medo.
As situações estranhas são constantes: acontecimentos fora do comum, um gato preto assombroso, a lua brilhante e sedutora como as duas personagens femininas, pesadelos cada vez mais fixados nas noites de sono, pessoas que morrem subitamente, num esquema de terrores noturnos que reforçam o quão as coisas estão erradas depois da chegada de Carmilla, a vampira do título. É um restaurador de pinturas que perceberá a semelhança desta moça com alguém visto noutra situação que ele demora a associar. Logo Laura adoece de um mal que também assola outras jovens mulheres da região. Ela sequer consegue compreender o magnetismo de Carmilla em torno de sua vida, nesta história que traz uma mixagem de diversos elementos da mitologia vampírica, oriundo de culturas diversas. O desfecho, como esperado, termina com a busca pela aniquilação da vampira, neste conto eficiente que evoca cenários físicos e psicologia para lidar com os esquemas sobrenaturais que dominam a história.
Publicado recentemente pela editora Pandorga, a edição lida para esta análise traz também o conto O Vampiro, de John William Polidori, outra história sobre estas criaturas que pavimentaram o caminho até a chegada de Drácula, de Bram Stoker, de 1897, romance que tal como já sabemos, definiu as principais representações dos vampiros até os dias atuais. Ambos os contos trazem sedução, sangue, paisagens nebulosas e atmosfera sombria, acompanhados de breves biografias de seus escritores, além de ilustrações que tornam a publicação em capa dura atraente para os leitores que gostam de ir livros tão envolventes quanto as suas histórias. Por seu apelo erótico, Carmilla: A Vampira de Karnstein ganhou várias traduções de sua estrutura literária para o cinema, em filmes sanguinolentos, repletos de cenas de sexo e muita sensualidade. Provável inspiração para Stoker conceber o seu conde da Transilvânia, este é um conto muito interesse, de leitura dinâmica e com doses generosas de suspense, um eficiente antecipador de Drácula.
Carmilla: A Vampira de Karnstein (Carmilla – Irlanda, 1872)
Autoria: Sheridan Le Fanu
Editora: Editora Pandorga
Tradução: Giovana Mattoso
Páginas: 176