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Crítica | Barbie (2023)

Nada é o que parece no mundinho cor-de-rosa.

por Luiz Santiago
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O projeto para uma adaptação em live-action da icônica boneca criada por Ruth Handler em 1959, passou por três estúdios: primeiro a Universal, entre 2009 e 2013; depois a Sony, entre 2014 e 2018, e por fim, a Warner, que já em janeiro e 2019 anunciou a escalação de Margot Robbie para o elenco e a dupla Greta Gerwig e Noah Baumbach para o roteiro. Dava-se início a uma produção que até bem pouco tempo antes de sua estreia era tida como uma chacota completa, um filme vergonhosamente artificial e reafirmador de bobagens e frufrus do mundo infantilizado das bonecas, entorpecido de rosa, alienação e utopia brega. O mais gostoso nisso tudo é que a diretora Greta Gerwig pega essas características possíveis do Universo da Barbie e as transforma numa obra divertidíssima, um filme realmente importante para o cinema por pegar um brinquedo e não fazer uma propaganda de duas horas sobre ele. Parte do maior evento cinematográfico de 2023 (o Barbieheimer), este longa teve em sua campanha de marketing uma virada de chave na percepção de público que não é todo dia que encontramos, principalmente em tempos onde as bolhas culturais são muito fechadas e não é fácil romper e chamar a atenção de pessoas fora de um possível alvo — principalmente quando a obra se propõe a entregar algo diferente da imaginação sobre dela. E esta é a chave de ouro para qualquer um que se aventure pela Barbielândia. Para usar um termo reforçado pela diretora em entrevistas, estamos falando de uma obra que faz questão de exaltar a “artificialidade autêntica“.

O foco aqui é a interação entre mundos, tanto em seu aspecto estético quanto em seu aspecto ideológico, e o roteiro não vai poupar críticas e louvores ao impacto e às ideias que a famosa boneca trouxe para gerações de meninas (e de alguns meninos também), começando pelo corpo e beleza inalcançáveis e seguindo para o reforço de práticas e ideias de comportamento social que basicamente replica o padrão da “mulher dos Estados Unidos nos anos 1950“. Um padrão que a Mattel procurou mudar ao longo das décadas, transformando representatividade em meios de ganhar ainda mais dinheiro, mas sem arredar o pé do estereótipo. O filme opõe esse padrão de criação e comportamento às diferentes ideias possíveis que se possa ter em relação à Barbie, mostrando-nos um mundo inteiro controlado por uma visão feminina (uma sociedade matriarcal) e o quão diferente isso é de nosso próprio mundo, controlado por uma visão masculina (uma sociedade patriarcal).

Isso nos leva para o lado idealista que a fita discute sem reservas. Em sua mistura de gêneros (comédia, drama, musical, fantasia dadaísta), ela coloca em cena padrões de papel social que, convenhamos, é o cerne do Universo da Barbie nos brinquedos e nas animações. As várias profissões, os figurinos, os cenários e objetos das bonecas e de seus Kens mostram que o ideal é integrar as mais variadas possibilidades da existência da mulher na fantasia do mundo infantil; e pensem nisso a partir de uma perspectiva histórica: a Barbie saiu de uma boneca de maiô listrado, em 1959, para uma boneca presidente, décadas depois. O que Greta Gerwig faz de maneira aplaudível aqui é pegar exatamente essa essência do Universo cor-de-rosa e encontrar o conflito que está na cara de todos: as Barbies são as estrelas da brincadeira e os Kens… são só os Kens. Pergunta: o que garante a predominância feminina, nesse Universo? E se essa predominância fosse trocada e, por acaso, se parecesse com outra, tão conhecia em nosso mundo? A coisa estava lá o tempo inteiro! A dupla Gerwig e Noah Baumbach só identificou e escreveu um roteiro ótimo em cima da questão.

É por isso que o grunhido no baixio das bestas pseudo-sommeliers de testosterona nos faz rir diante da frase “Barbie é um filme anti-homem“. Isso não só é estupidez, como também inaptidão cognitiva de compreender um dos enredos mais comicamente diretos e simples sobre os problemas de relações interpessoais frente aos gêneros (no teatro e na literatura, esse embate sempre foi chamado de “guerra dos sexos“, e o cinema brinca com isso desde a Era clássica, inclusive em duas das muitas referências da diretora para o longa, Jejum do Amor e Núpcias de Escândalo, ambos de 1940), também focadas em problemas sociais que todos nós sabemos existir e que são hoje amplamente discutidos. A falha da direção e do roteiro, especificamente nessa questão, aparece quando uma personagem externa a esse mundo assume a tempestade de ideias e, após algumas boas incursões, repete concepções ou chama a atenção para coisas abordadas de forma mais interessante em outros momentos da película.

Na proposta de debate para importantes disparidades sociais frente à breguice artificial do Universo Barbie, a direção consegue criar diálogos e situações preciosas e muito bem dosadas de humor e outras variações de gênero dramático que perpassam os atos do projeto. Nessas mudanças de atmosfera, conseguimos apreciar com afinco a criativa fotografia de Rodrigo Prieto — que filma 50 tons de rosa numa mesma cena sem nos fazer querer vomitar — e as dezenas de referências visuais que influenciaram a diretora na configuração estética, entre composição de cenas e escolhas plásticas muito particulares, como peças do figurino, tipo de cabelo ou piadinhas cinéfilas que já tínhamos tido contato desde o trailer parodiando 2001: Uma Odisseia no Espaço. Aqui, teremos vislumbres de O Mágico de Oz e o O Show de Truman; passaremos pela artificialidade meio conto-de-fadas dos filmes de Jacques Demy; pela dança e atuação coreográfica de Gene Kelly; pela intensidade visual e dramática de Os Sapatinhos VermelhosAll That Jazz… é muita coisa. Barbie é um poço de referências cinematográficas enriquecedoras.

A escolha de Margot Robbie para viver a protagonista foi um presente para o público. A atriz cria uma Barbie Estereotípica perfeita, fazendo as quebras dramáticas de maneira coerente dentro desse Universo e transmitindo a inocência e a animação meio inconsequente ligadas à personagem. É um trabalho relativamente contido, mas muito escrupuloso e marcado por expressões faciais e linguagem corporal milimetricamente ensaiadas. Do elenco feminino, o elo frágil é America Ferrera, mas apenas em um bloco de cena específico, no brainstorm diante de outras personagens. Já o elenco masculino está muito bem azeitado, tendo Ryan Gosling como o Ken protagonista e apresentando um personagem engraçado na medida certa, fazendo manha na medida certa e integrando-se muito bem ao mundo da Barbie, até o momento em que não quer mais integrar-se. É em consequência a um ato dele, inclusive, que temos uma das melhores cenas do filme: a cena de batalha na praia. E não dá para deixar de citar a coreografia só com o elenco masculino, que tem um bárbaro uso de trilha sonora e organização visual cênica (mais um mérito da direção de Gerwig), emulando os musicais da década de 1930.

Barbie fala sobre escolhas e mudanças. Nas mãos de Greta Gerwig, o comportamento típico das bonecas e bonecos, via imaginação, ganha forma crítica e aponta para muitos caminhos, visitando a metalinguagem, as relações político-sociais, o patriarcado e o feminismo, os sentimentos (inclusive a postura arrogante e insensível da Barbie diante do Ken; assim como a doentia dependência do boneco frente à namorada), as crises existenciais ou a aceitação de própria condição social e de gênero. A obra cumpriu a promessa de que teríamos um produto diferente do que se podia imaginar de um live-action da Barbie. É o uso assumido da artificialidade autêntica para mostrar as contradições, as sugestões de progresso e as possibilidades de um Universo com a cara dos anos 1950 que ninguém jamais tivera a coragem de mostrar o que realmente era, em todas as suas nuances e possibilidades de transformação. Até agora.

Barbie (EUA, Reino Unido, 2023)
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach
Elenco: Margot Robbie, Issa Rae, Kate McKinnon, Alexandra Shipp, Emma Mackey, Hari Nef, Sharon Rooney, Ana Cruz Kayne, Ritu Arya, Dua Lipa, Nicola Coughlan, Emerald Fennell, Ryan Gosling, Simu Liu, Kingsley Ben-Adir, Ncuti Gatwa, Scott Evans, John Cena, Michael Cera, America Ferrera, Ariana Greenblatt, Rhea Perlman, Will Ferrell, Connor Swindells
Duração: 114 min.

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