Quando, em 1979, o historiador americano Martin J. Sherwin, especializado na proliferação de armas atômicas, começou a trabalhar na pesquisa sobre J. Robert Oppenheimer, diretor científico do Projeto Manhattan, já existiam diversas publicações das mais diferentes naturezas sobre o início da Era Atômica e sobre o físico que liderou a corrida que resultou na bomba atômica e que mudou profunda e irrevogavelmente o mundo da noite para o dia. O próprio Sherwin, em 1975, publicara uma obra sobre a decisão dos EUA de bombardear o Japão ao final da Segunda Guerra Mundial, pelo que sua decisão em focar em Oppenheimer foi uma evolução natural.
No entanto, apesar de ter entrevistado mais de uma centena de pessoas e de ter mergulhado profundamente em basicamente todos os documentos disponíveis, pelas mais variadas fontes – inclusive e especialmente o FBI -, o livro não viu a luz do dia na década de 80 como planejado e só começou a tomar forma de verdade em 1999, quando ele convenceu o biógrafo Kai Bird a juntar-se ao esforço, o que tornou possível a publicação do detalhado calhamaço em 2005, depois de dezenas e dezenas de outras obras terem sido publicadas sobre o mesmo assunto e a mesma figura histórica. Mas então o que faz de Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano um livro especial a ponto de ter merecido o Prêmio Pulitzer e de ter sido a base principal para um longa-metragem de 2023 escrito e dirigido por Christopher Nolan?
Provavelmente existem diversas respostas possíveis a essa pergunta, mas é notável como o livro histórico-jornalístico de Bird e Sherwin consegue ser muito mais do que “apenas” uma biografia. Sim, os elementos biográficos são da essência da obra, não tenham dúvida, mas arriscaria dizer que eles são muito mais utilizados como um incrivelmente complexo e rico pano de fundo para comentários cáusticos sobre a escalada belicista dos EUA iniciada na presidência do democrata Harry S. Truman, a condenação do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki e, principalmente, da combinação das táticas podres do FBI sob o comando de J. Edgar Hoover com o histerismo anticomunista capitaneado pelo senador republicano Joseph McCarthy, e isso sem que os autores, em momento algum, partam para maniqueísmos que absolvam ou condenem, demonizem ou endeusem Oppenheimer.
Oppenheimer, vale deixar bem claro, é estudado ao longo de toda sua vida e, de um jovem gênio tímido de vida privilegiada com interesses difusos, mas que gravitam ao redor da ciência, especialmente química e física, vemos sua luta contra questões mentais e sua evolução e transformação em um homem eloquente, admirado, capaz de dar aulas e fazer palestras como ninguém e de captar o potencial de ideias a ponto de ele próprio servir de trampolim para os mais diversos estudos que levaram outros – nunca ele próprio – a ganhar vários Prêmios Nobel em física, tudo desaguando em sua capacidade quase que inacreditável de gerenciar não um mero grupo de cientistas focado na criação de uma poderosa arma a partir da manipulação do átomo, mas sim de uma cidade inteira construída do nada em Los Alamos, no Novo México, com milhares de pessoas vivendo por lá em tempo integral. No entanto, como disse, esse é o pano de fundo que aborda um cientista repleto de nuanças, um homem inegavelmente genial, mas também arrogante e orgulhoso e ao mesmo tempo socialmente consciente e ingênuo, pano de fundo esse que é cuidadosamente pintado desde o começo pela maneira como seu pensamento gravita à esquerda do espectro político.
Sendo honesto, o leitor precisará provavelmente de uma boa dose de paciência para que o livro comece a pagar dividendos, mas é absolutamente necessária a escolha da dupla de autores em destrinchar cuidadosa e detalhadamente as amizades, inimizades, inspirações, amantes, divergências políticas, mudanças de posição e todos os demais aspectos que informam Oppenheimer desde jovem. Além disso, é necessário ter em mente que o livro não é sobre o Projeto Manhattan, ainda que, obviamente, ele seja devidamente abordado no segundo terço da obra, mas sim sobre Oppenheimer como símbolo de uma era vergonhosa para os EUA tanto em sua política interna quanto externa, sem que ele, no fundo, seja efetivamente culpado de nada (a não ser que culpemos o inventor do revólver pela forma como ele é usado).
Se houver serenidade e interesse por parte do leitor, portanto, para absorver os vários – e enfatizo o “vários” – desvios narrativos que os autores fazem para colorir as figuras históricas que gravitam ao redor de Oppenheimer, aí incluídos seu mentor Neils Bohr, que sempre defendeu o compartilhamento de informações sobre a bomba com os soviéticos, seu amigo de longa data Haakon Chevalier cujas conexões com o Partido Comunista trouxeram muitos problemas, sua esposa Kitty e seu irmão Frank, também com laços com o comunismo e, claro, com Lewis Strauss, que se tornaria seu inimigo mortal e algoz, a obra mostrar-se-á riquíssima e densa, com um cuidado extremo com a fluidez que só sofre algumas raras vezes com repetições próximas de assuntos e explicações. E, muito sinceramente, sem essa vasta constelação de personagens, o livro não seria especial como ele definitivamente é, já que todo o laborioso texto que toma dois terços das páginas permitem uma visão assustadora do que talvez seja o exemplo máximo do macarthismo: o processo administrativo repleto de manobras sujas a que Oppenheimer foi sujeito anos depois do fim do Projeto Manhattan.
Mal comparando, Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano é como se fosse o J’Accuse! de Émile Zola aplicado a uma circunstância em que o acusado é uma figura de tamanha complexidade que não é fácil se conectar com ela. Afinal, mesmo com todos os atenuantes ao seu redor – por vezes esvaziados por agravantes, reconheço – Oppenheimer é, em última análise, responsável pela criação da grande arma de destruição em massa que mudou e continua mudando a geopolítica mundial, pelo que usar a palavra “herói” para classificá-lo não é fácil, algo que, aliás, Bird e Sherwin não empregam em momento algum, ainda que obviamente olhem para o Pai da Bomba Atômica como uma vítima de um sistema inacreditavelmente perverso e kafkiano.
E, para além de isso tudo, o livro é dolorosamente atual também pela equivocada dicotomia absoluta entre a esquerda e a direita no mundo de hoje, algo recrudescido, amplificado e facilitado por diversos fatores modernos, inclusive as redes sociais que impedem discussões civilizadas, com os lados entrincheirados e incapazes de perceberem o quão são idiotas. Chega a ser perturbador quando os autores, usando as palavras do próprio Oppenheimer, estabelecem sua visão humanitária do mundo antes do Projeto Manhattan e sua internalização de responsabilidade depois da criação da bomba atômica que, ato contínuo, pelos filtros de Strauss, passam a ser provas cabais do comunismo e, portanto, traição dos EUA por Oppenheimer, enquanto que até mesmo generais que trabalharam ao lado do cientista percebem que, por mais estranho que fosse o cientista, ele jamais seria capaz de quebrar a confiança posta sobre seus ombros.
Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano é uma obra de valor inestimável, uma biografia que não se contenta em passar a mão na cabeça da pessoa biografada e que usa a vida dela não como um fim em si mesmo, mas sim para discutir um assustador – mas estranhamente fascinante – contexto geopolítico que é a regra até os dias de hoje. Se J. Robert Oppenheimer é herói ou vilão, se teve o fim que mereceu ou se foi injustiçado, se merece ser lembrado ou esquecido fica para cada leitor decidir quando virar a última página, mas uma coisa é absolutamente certa: sua biografia por Kai Bird e Martin J. Sherwin é leitura essencial.
Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano (American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer – EUA, 2005)
Autoria: Kai Bird, Martin J. Sherwin
Editora original: Alfred A. Knopf
Data original de publicação: 05 de abril de 2005
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Data de publicação no Brasil: 27 de junho de 2023
Tradução: George Schlesinger
Páginas: 721