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Entenda Melhor | Melville e Spielberg: Ecos de Moby Dick em Tubarão

O que o filme de Steven Spielberg traz de conexões com o romance de Herman Melville?

por Leonardo Campos
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Um romance volumoso sobre a vingança de um homem, obcecado pela baleia cachalote que numa ocasião do passado, ceifou a sua perna. Um filme sobre a presença de um tubarão branco de enormes proporções que estabelece o caos numa cidade litorânea em pleno verão. O mencionado livro, publicado em 1851, intitulado Moby Dick e escrito por Herman Melville, ainda na atualidade rende muitos debates em terrenos discursivos diferenciados, desde o senso comum dos leitores não especializados aos trabalhos acadêmicos das esferas institucionais. A narrativa cinematográfica inspirada no romance homônimo de Peter Benchley, Tubarão, marco na carreira do cineasta Steven Spielberg, também gera reflexões ainda na contemporaneidade, mesmo após seu lançamento em 1975, há quase cinco décadas. Num exercício comum ao terreno da literatura comparada, estabeleço neste breve, mas creio que elucidativo artigo, as conexões entre o livro e o filme, uma ligação que não demonstra apenas duas batalhas semelhantes entre os seres humanos e as forças da natureza no ambiente oceânico, mas uma série de reverberações filosóficas que nos demonstram como estas histórias conseguem ir além da mera aventura para expor aos seus leitores e espectadores, uma gama de significados mais abrangentes.

No romance, acompanhamos a jornada dos tripulantes de uma embarcação chamada Pequod, responsável por manter um grupo de homens ao mar durante a caça aos cetáceos que forneciam matéria-prima para diversos segmentos da industrialização prévia ao petróleo: iluminação das ruas, motores, âmbar para perfumes, dentre tantas outras coisas. Eis as motivações para a aniquilação das baleias cachalotes. Na viagem em questão, narrada pelo inexperiente Ismael, temos na verdade uma reviravolta estabelecida pelo Capitão Ahab, um homem amargo que revela o real motivo da travessia: caçar e matar a baleia que nomeia o livro, Moby Dick, animal misterioso e enfurecido que, no passado, arrancou a sua perna e o transformou numa pessoa que transpira vingança. Nesta empreitada que termina em tragédia há confrontos, questões multiculturais, momentos de aventura, descrição de paisagens e análise de comportamentos, numa travessia que deixa apenas o narrador como sobrevivente para nos contar a história.

No filme, acompanhamos a saga do xerife Brody, figura influente em Amity, cidade litorânea que está à espera dos turistas que lotarão as praias, em decorrência do verão escaldante que promete, dentre tantas coisas, um forte aquecimento da economia local. Um imprevisto, por sua vez, começa a mudar a ordem: após a primeira vítima de um tubarão branco de enormes proporções aparecer na praia em processo de decomposição, o representante da leia começa a se preocupar com o que poderá acontecer se mais ataques de confirmarem. Entram em cena um biólogo marinho e um caçador de tubarões, personagens que o ajudarão na caça ao animal enfurecido, criatura que desafia tudo já visto antes na trajetória de todos, responsável por dizimar a vida de outros personagens e tocar o terror na região. Enquanto o prefeito estimula o turismo e sequer se importa com os riscos, o trio precisará arranjar uma maneira de enfrentar o monstro que representa não apenas uma ameaça marinha, mas metáforas políticas e sociais da época.

Diante do exposto, vamos para as relações. Moby Dick, de Herman Melville, e Tubarão, de Steven Spielberg, são narrativas que nos apresentam o ser humano num forte embate com as forças da natureza. A tal imagem animalesca, nas duas histórias, tem como ponto de partida o mistério das caudalosas águas oceânicas, em linhas gerais, abissais e capazes de confundir tudo aquilo que a racionalidade própria do humano tem como referência. Além disso, no desfecho de ambas às narrativas, contemplamos o herói solto pelo mar, boiando (num caixão ou num pedaço das ruínas de um barco), ainda a compreender o seu destino depois da experiência turbulenta com as forças da natureza, bem como a tão complexa jornada diante do comportamento humano. Ainda assim, provoco: podemos ir além diante destas associações e tentar compreender o que mais o filme compartilha com o romance neste esquema de ecos ressoantes do clássico ao moderno?  A resposta, caro leitor, é um sonoro sim: Quint e Ahab, ambos em busca de vingança.

Tal Ahab comanda o Pequod em Moby Dick, o caçador de tubarões Quint comanda a embarcação Orca em Tubarão. Os dois são personagens mais velhos, experientes, aparentemente loucos com suas falas e aparições consideradas exóticas em relação ao contexto onde estão inseridos, figuras ficcionais obcecadas por seus nêmesis. O ponto de partida literário deseja aniquilar a baleia de cor branca, extremamente rara, considerada arqui-inimiga após arrancar uma de suas pernas num período de caça anterior ao que está descrito no romance de Melville. O outro, também fanático pela destruição dos tubarões, possui memórias nada animadas quando precisa se recordar de tais criaturas. Ele era um dos homens que afundaram no USS Indianápolis, em 1945, situação que deixou muitos marinheiros à deriva, expostos ao sol, fome, sede e, ainda pior, aos tubarões que transformaram os feridos e demais presentes num festival de dor e morte, num frenesi traumatizante para quem conseguiu sobreviver.

Vasto em suas possibilidades, tal como o clássico de Melville, Tubarão pode ser uma parábola ambiental, uma reflexão sobre a condição humana no bojo do capitalismo, uma fábula sobre a ganância humana, dentre tantas outras questões, sendo a vingança uma de suas principais conexões. Como costumo dizer em minhas aulas, a palavra-chave que liga as duas narrativas. Quint é um homem repleto de cicatrizes. Tanto Quint como Ahab desperdiçam sua vida com algo que as histórias parecem estabelecer como um desperdício diante da sobrevivência. Obcecados por vingança, ambos colecionam fracassos e desavenças em suas vidas após as experiências traumáticas do passado. Num determinado ponto da trama, Quint parece ficar cego diante dos fatos e não importa quem o esteja acompanhando, sua única preocupação é destruir a fera marinha que é o alvo de sua obsessão, tal como Ahab faz com os tripulantes do Pequod. Tanto o tubarão branco quanto a baleia cachalote são anjos da morte, criaturas que parecem surgir em cena para punir, sendo este também um dos pontos de associação bastante interessante entre o clássico e o moderno.

Ademais, há ainda outras ilações possíveis, mas que decidi não desenvolver por aqui: observe o contraste entre Hooper e Queequeg, em especial, as suas funções dentre das narrativas. O imediato Starbuck e o filho do xerife Mikey, também ocupam posições curiosamente próximas em cada uma das histórias, salvaguardadas as devidas proporções. Tal como Moby Dick, em 1851, Tubarão também precisou de mais tempo para assimilação dos que desejam interpretá-lo, ganhando novos contornos ao passo que se tornava um clássico do cinema moderno, em suma, narrativas não compreendidas adequadamente enquanto eram fenômenos na época de seus respectivos lançamento, com a diferença de que o livro amargou como fracasso literário, sendo o filme um arrebatador de bilheterias. Por fim, as duas histórias propõem uma batalha travada com a ameaça, vidas perdidas diante do confronto, e, cada um a seu jeito, os monstros do romance e da narrativa cinematográfica voltam para as profundezas, encerrando a história.

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