Quando se inicia o live-action de Cavaleiros do Zodíaco algo já soa como inadequado: talvez o CGI, as referências, a própria imagem do cosmos… algo parece fora do lugar, contudo, essa ainda é apenas uma impressão de entrada. A problemática é apresentada, a história da Deusa Atena vulgo Saori Kido nos é relatada em poucas palavras e então entramos num terreno conhecido: a deusa, salva pelo cavaleiro de Sagitário, irá renascer para proteger o mundo das trevas; eles, os cavaleiros de bronze e ouro, são os responsáveis por guardá-la segura no seu templo. Mas onde estão todos eles?
O título aponta para uma ideia de gênese, isto é, de um começo. Algo vai ser explicado e do início, mas nada nos é explicado como deveria ser feito. O primeiro ato se concentra em trabalhar a figura de Seiya, de Saori e de alguns outros personagens subjacentes; tem a conhecida cena do ring de luta, em que os cavaleiros lutam para supostamente obterem suas armaduras e logo em seguida Seiya é cooptado e escolhido para ser o Cavaleiro de Bronze da armadura de Pegasus. É tudo muito rápido, sem identificação prévia de quem é quem e por um minuto ou mais parece que estamos assistindo a qualquer coisa que não uma live-action do anime-mangá. O filme abre mão da Saga do Santuário, que é o início de tudo, para trazer o nada; um vazio argumentativo irreparável.
Em enredo, a obra divide-se entre a aproximação de Pegasus e Saori, que compartilham de uma espécie de “romance”, um interesse mútuo; e por outro lado acontece a narração do nó dramático, que é a tentativa da mãe de Saori de raptá-la e exterminá-la de uma vez por todas. Que o filme de Tomek Bagiński decepciona de entrada e de saída é um fato – uma vez que não consegue trazer à atmosfera fílmica a identidade, o vigor e a força que mantêm o clássico tão vivo na mente de centenas de milhares de fãs – mas espanta, sobretudo a mim, a destreza com que consegue aniquilar qualquer vestígio da essência dos Cavaleiros do Zodíaco em sua adaptação. Se talvez algo precise ser realçado como tendo muita lealdade ao original são as cenas entre Seiya e Marin, que emulam fielmente tanto o mangá, quanto o desenho, de resto, é um material descartável. Marin está impecável.
Tudo é extremamente previsível. Algo que me irrita profundamente é já sabermos os próximos passos que serão tomados nas cenas, não porque já conhecíamos os rumos da trama tradicional, mas porque o roteiro e o enredo entregam, de mãos beijadas, tudo aquilo que preparou, demonstrando amadorismo e preguiça no trabalho com a história principal. Como trama, ela é facilitada ao máximo e complexificada ao mínimo. As falas já precedem as respostas que serão dadas adiante e a montagem é uma bomba, para dizer o mínimo, porque não induz o espectador à curiosidade, mas o faz entediar diante de uma tela de cinema com a previsibilidade.
Essa tentativa de trazer o mito para a contemporaneidade é algo que no filme não ficou interessante, A transição do arcaico para o moderno retira da atmosfera da obra toda a sua magia e é como se os problemas tecnológicos que surgem ao longo da trama servissem para inflar o enredo de algo que não é próprio e nem natural a ele. Tudo fica terrivelmente inverossímil ao ponto de deslocar o espectador para um lugar que é tudo menos o universo dos Cavaleiros do Zodíaco a que se está acostumado. Chega um momento em que o drama pessoal de Seiya e Saori fica tão açucarado que nos relembra um desses romances feitos para adolescentes os quais não têm nada a oferecer senão problemas e diálogos dos mais bobos possíveis.
A caracterização de personagem é sempre o momento mais esperado em um live-action. Aqui, a Saori é o que de pior eu vi em anos numa adaptação de personagem. Uma palerma, frívola e oca em nível máximo, e não lembra em nada a figura emblemática e moderadamente dócil que é a deusa. Seiya: apesar de pouco trajar a sua armadura, sua construção como personagem segue uma linha diretiva lógica e atende, mesmo que minimamente, o esperado – ainda que o façam despersonalizar quase completamente do seu alter ego Pegasus. Ikki de Fênix como o suprassumo do mal, o arquiteto da maldade, o cabeça por trás de toda a ruindade do mundo, não colou. Só o identificamos nas cenas finais, quando enfim seu cosmos queima e as suas asas em chamas aparecem. É um dos personagens mais estragados da película e que não faz juz a esse cavaleiro tão complexo, melancólico, sério, ressentido e cabal que é o Ikki de Fênix. Transformam-no em qualquer coisa apenas para que tenham um antagonista para a trama. As lutas bem coreografadas não valem de nada diante da tragédia que é o todo fílmico.
Pensar que isso teve a aprovação de Masami Kurumada só me leva a hipótese de que a venda de direitos autorais vale muito dinheiro, o que justificaria a feitura de um enredo tão desprendido da verdade da obra original. Ao público geral, este é apenas mais um filme bobo de ação e “super herói”, porque é assim que ele está sendo vendido – e foi assim que ele se apresentou no decorrer da película, mesmo não sendo especificamente isso. Aos fãs, é um uma esperança despedaçada, bagunça herética e uma releitura impensável e inconcebível. Uma narrativa que em nada contempla o que deve ser contemplado, mas que inventa a seu bel prazer um roteiro que destoa da essência do mangá-anime, Cavaleiros do Zodíaco: O Começo não serve como entretenimento, nem como fanservice.
Os Cavaleiros do Zodíaco – Saint Seiya: O Começo (Knights of the Zodiac: Saint Seiya: The Beginning, EUA, Japão, 2023)
Direção: Tomek Bagiński
Roteiro: Josh Campbell, Matt Stuecken, Kiel Murray (baseado na saga de Masami Kurumada)
Elenco: Mackenyu Maeda, Ryusei Iwata, Famke Janssen, Madison Iseman, Diego Tinoco, Mark Dacascos, Nick Stahl, Sean Bean, Caitlin Hutson, Katie Moy, TJ Storm, David Torok
Duração: 112 min.