A ação desta graphic novel se passa no Novo México, um dos territórios roubados dos mexicanos pelos estadunidenses durante a primeira Guerra Estados Unidos-México (1846 – 1848), e incorporado à terra do Tio Sam — durante o pleno avanço de seu Destino Manifesto genocida no século XIX — pelo infame Tratado de Guadalupe Hidalgo, assinado em 2 de fevereiro de 1848. O roteiro de Pasquale Ruju não especifica a data da ação dessa história, mas pensando na estrutura das aventuras de Tex, é lícito imaginarmos aqui o período pós-anexação. Ainda assim, algumas coisas precisam ser esclarecidas, para critério de construção do argumento que o próprio autor expõe na trama. Primeiro: o fato de um território ter sido roubado e posteriormente “legalizado” nas mãos de uma nação, não significa que a cultura e os habitantes locais serão imediatamente substituídos ou forçados a uma lavagem cerebral. Ou seja, quando Tex e Carson são chamados de “gringos“, mesmo estando em seu próprio país, entendam que o autor não está cometendo um erro. Ele está correto: a população da região era majoritariamente miscigenada de hispânicos + indígenas, e qualquer um que fugisse a esse padrão étnico… era gringo.
Segundo: justamente por se tratar de uma região roubada das mãos de descendentes de espanhóis com indígenas do norte do México, até meados dos anos 1800, é evidente que os problemas regionais serão muitíssimo parecidos com os problemas encontrados em outras localidades da América Latina. Mais uma vez: a população local era latina/originária, assim como sua cultura e sua história, portanto, a questão latifundiária e especificamente o problema da água, diante de uma seca regional, é visto também sob o olhar latino. Esclarecido isso, devo dizer que o texto de Ruju aqui é certeiro ao abordar o problema através de um aspecto puramente social, canalizando esses problemas históricos na figura do latifundiário Vicente Samargo, que age como o malvado dono de terras que prefere ver camponeses morrendo de fome e sede a compartilhar a água de um rio. Já conseguem estabelecer ligações e identificar semelhanças?
O autor, é claro, usa de forte apelo emocional para construir a ideia de oposição entre proprietários e trabalhadores, mas as questões em cena são verídicas e recebem um tratamento quase cinematográfico em sua parte final. E como já fiz outras vezes nessa série, devo lamentar o tamanho curto desse formato, que para histórias desse porte acabam sendo um podador terrível. Parte dos problemas que temos neste volume estão justamente ligados ao equilíbrio tempo, com o autor precisando encurtar cenas importantes, abreviar bons conflitos e evitar diálogos de contexto, para dar conta de uma trama em duas camadas (um problema de terra/água e um sequestro). Nisso reside o problema central de Águas Negras.
A solidez da arte de Giampiero Casertano e a bela aplicação de cores de Matteo Vattani fazem transparecer com precisão a seca do local e ressaltam a dor no rosto dos personagens centrais, especialmente os pobres. A cena do massacre dos camponeses a mando do dono das terras é intensa, assim como a melodramática cena final, com o herói resolvendo o caso da maneira mais “novela mexicana” possível — e ainda assim, num ato tragicamente realista. A luta popular pelo direito a algo tão básico como a água, acaba se confundindo com uma parceria criminosa, por parte de um dos camponeses, seguido de arrependimento e da interferência quase divina por parte de Tex e Carson. Todos os bons ingredientes de uma aventura emotiva e de cunho histórico-social estão presentes aqui. Infelizmente, alguns exageros narrativos e o pouco tempo de desenvolvimento e conclusão do enredo geraram alguns atropelos e diminuíram o peso dessa aventura, que a despeito de ser muito boa, tinha potencial para voar ainda mais alto. Ainda assim, põe o dedo em uma ferida recorrentemente aberta em territórios latinos. Nós brasileiros sabemos muito bem disso…
Tex Graphic Novel #14: Águas Negras (Aguas Negras) — Itália, fevereiro de 2022
Sergio Bonelli Editore
No Brasil: Tex Graphic Novel n°12 (Editora Mythos, dezembro de 2022)
Roteiro: Pasquale Ruju
Arte: Giampiero Casertano
Cores: Matteo Vattani
Capa: Giampiero Casertano
Tradução: Júlio Schneider, DVL
50 páginas