Me surpreendeu bastante a linha dramática adotada por Mauro Boselli neste volume de Dampyr. O autor mantém a essência da série na representação do horror (nesse caso, sombras assassinas vindas de outra dimensão), mas sua atenção não vai para os estranhos monstros, e sim o desenvolvimento de fatos que nos mostram a amizade entre Théo Durand e Adriaen De Kremer, além da construção da personalidade de cada um deles nessa história. O papel de Harlan Draka aqui é de um investigador acidental, que está na cidade de Gante, Bélgica, já no processo de entender uma série de crimes em andamento (o arranjo para a chegada dele no local e a justificativa primordial para essa chegada são feitos em elipse) e acaba encontrando os protagonistas locais. Aos poucos, o enredo se afunila e promove o encontro dos personagens.
Junto à policial Hanneke, com quem tem um caso temporário; e após um breve contato telefônico com Kurjak, Draka procura entender a morte de indivíduos idosos nascidos em 1938 (lembrando que a HQ foi originalmente publicada em 2002); mortes cruéis e misteriosas em diversos aspectos. As vítimas deste caso são encontradas de diferentes formas: sem nenhum sangue no corpo, totalmente coberta por hematomas ou simplesmente cobertas de sangue. Os motivos pelos quais isso acontece, no entanto, não são imediatamente expostos pelo roteiro. Algumas pistas a respeito do passado de Adriaen aparecem, assim como algumas cenas macabras de sua infância, de seu estranho avô e dos fantasmas que ele vê no momento presente, mas tudo isso está envolto em uma aura de mistério. O problema é ele ou está apenas ao redor dele? O autor esconde de nós a motivação por trás desses tormentos e exatamente o quê isso tem a ver com as mortes contemporâneas dos personagens.
Pela maneira como o autor cria o encontro com os vilões e pelos desenhos de Luca Rossi, fica difícil não lembrar-se de H.P. Lovecraft aqui. A presença de seres de outra dimensão, a forma de ação desses indivíduos e a incrível sequência do flashback para o relato no diário do Capitão Jack Flanders (a arte de Rossi muda todo o aspecto de finalização neste ponto, dando ainda maior destaque visual à narração) nos fazem pensar em criaturas de grande poder que, por algum motivo, chegaram à Terra via algum portal e apossaram-se de alguns corpos humanos. Embora a motivação dada ao final tenha me parecido fraca e eu veja a necessidade de alguma explicação ou abordagem maior para esses seres, devo dizer que o papel que eles deveriam cumprir na história, foi cumprido. O leitor é posto, nesse caso, em uma encruzilhada moral, tendo que julgar, de forma complexa, a culpabilidade do invólucro humano dominado por essa bolha preta vinda de algum lugar do espaço.
Em momentos de dificuldade, quando alguém “sai de si” (nesse caso, literalmente) é lícito imaginar a presença de um amigo, de um guia sentimental que ajude o parceiro a encontrar-se. Em Pesadelo Flamengo, temos uma história de possessão diferente, que cerca o tema da amizade em uma situação possessiva, com um desenvolvimento que não torna o alien a atenção primordial do texto, mas sim a relação entre os personagens envolvidos com essa criatura e tudo o que ela pode fazer. O contexto dado por Boselli traz ainda a luta entre partisans e colaboracionistas na Segunda Guerra Mundial, dando um aspecto histórico, humano e também intrigante a uma trama que discorre sobre adaptação, aceitação, convivência e controle de impulsos negativos.
Local de ação: Bélgica (cidade de Gante/Gent, na região de Flandres, capital da província da Flandres Oriental)
Personagens principais: Harlan Draka, Kurjak, Hanneke, Théo Durand, Adriaen De Kremer
Dampyr – Vol.25: Pesadelo Flamengo (Incubo fiammingo) — Itália, abril de 2002
No Brasil: Editora 85 (Dampyr – Vol.7, outubro de 2021)
Roteiro: Mauro Boselli
Arte: Luca Rossi
Capa: Enea Riboldi
Tradução: Júlio Schneider
100 páginas