Quando me indicaram este livro de Marc-Uwe Kling, não me disseram que eu passaria boa parte do tempo rindo de nervoso. Ficção científica cômica, publicada na Alemanha em 2017, a obra nos conta a história de um país chamado Qualityland, num futuro onde o sobrenome dos homens é dado pela profissão do pai, e o sobrenome das mulheres é dado pela profissão da mãe. É um livro de escrita fácil (até demais para o meu gosto, sendo este um dos “problemas de concepção” da obra, como explorarei mais adiante), repleto de momentos cinicamente divertidos, mas que deixa o leitor em um estado de nervosismo constante, porque é claramente uma extrapolação das estruturas sociais, das relações políticas, de classe, ideológica e principalmente econômica e tecnológica que temos em nossa realidade. E mais chocante ainda é o fato de o livro ser de 2017, de modo que quanto mais avançado no tempo você o ler, mais preocupante e amedrontador ele ficará.
Kling é formado em Filosofia, então é possível compreender muitas de suas escolhas teóricas aqui. Ao explorar esse futuro dominado pela The Shop, num país que mudou de nome após algumas “crises econômicas do século“, ele faz uso de dilemas morais e de problemas materiais que parecem piada quando relacionados a este ambiente. Sendo um homem anarquista, o olhar crítico do autor foca nas contradições do capitalismo e dá grande destaque para a relação que os indivíduos possuem com os algoritmos, com a entrega de seus dados para lojas online e redes sociais, e para a progressiva alienação das massas, fortalecida pelas “bolhas informativas” cada vez menos penetráveis.
Na separação de alguns capítulos, temos a exibição de notícias, atualizações de sistemas e marketing personalizado, abrindo uma pequena janela metalinguística, aumentada pelos comentários de usuários que se seguem a cada uma dessas incursões, com direito a QR Code para variações delas. Todavia, tudo é muito simples e, em alguns casos, bobo demais. O começo é o bloco mais maduro e mais interessante do livro. Existe uma preocupação do autor em manter um distanciamento calculado entre alguns aspectos sociais expostos nas páginas, a fim de que as inúmeras críticas ao funcionamento do capitalismo neoliberal possam ser processadas e apreciadas pelo leitor, de uma maneira orgânica em relação ao enredo. À medida que outras dimensões problemáticas aparecem, tal como a disputa eleitoral entre um androide e um candidato de extrema-direita; e a saga de Peter Desempregado para devolver um vibrador cor-de-rosa em formato de golfinho, essa relação se torna frágil e o texto cada vez menos instigante.
O olhar para a História é uma das coisas que mais me chamou a atenção aqui, e com isso, devo dizer que o cálculo de comportamento social para o futuro não deve estar muito distante do que realmente teremos daqui a um século. Nas escolas, por exemplo, a disciplina de História não existe mais. Agora os alunos cursam aulas de Futuro, onde falam de hipóteses sobre a tecnologia e o que ela poderá trazer de melhoria para as pessoas que estão acima do Nível 10 (indivíduos abaixo desse nível são chamados de “inúteis”). Essa população aliena a sua capacidade de escolha para assistentes pessoais e são alimentados diariamente por notícias banais e extremistas através de um chip auricular. Toda essa tecnologia, em vez de servir aos humanos, reforça o abismo de classes, a xenofobia (o grande inimigo aqui é um país chamado Quantityland) e a possibilidade de qualquer tipo de mudança através do voto ou da movimentação popular — o que não está muito longe da realidade nas democracias burguesas, convenhamos.
O autor traz para as suas discussões algumas teorias tecnológicas famosas, como o Paradoxo de Jevons, a Lei de Moore, as Três Leis da Robótica, o Teste de Turing e o Paradoxo de Moravec. Personagens misteriosos como “O Velho” ou “Kiki, a Desconhecida” ajudam a ilustrar um pouco essas teorias ao longo do livro, mas a partir de determinado ponto, elas me pareceram inúteis no contexto da obra. Além disso, é de se lamentar que o personagem do Velho não tenha sido mais explorado e servido para coisas muito mais interessantes no quesito de “luta contra o sistema”. O final, com o presidente John of Us e o surgimento de uma teoria da conspiração, é um daqueles momentos anticlimáticos que o autor tenta contornar, mas não consegue de todo. A grande janela metalinguística é mais uma vez aberta, no desfecho, mas pelo menos para mim, não teve nenhum tipo de impacto notadamente positivo.
Qualityland é um livro de fácil apreensão e que nos deixa um tantinho atormentados. A mínima comparação que fizermos em relação à tecnologia que hoje temos disponível, mais os possíveis rumos dela no futuro, nos leva para a realidade descrita na obra. E nada — absolutamente nada! — nesse cenário ultratecnológico e doentiamente mergulhado na divisão social através do lucro alimentado por algoritmos é aprazível. O leitor encontrará aqui alguns momentos de tensão, alguns momentos de comparação entre processos eleitorais e mesmo manifestações públicas de “cancelamento” que nos lembra diversos eventos em nossa sociedade. Mesmo que não tenha nenhum grande polimento literário por parte do autor, a trama nos cativa, nos faz rir e também nos faz pensar, especialmente nas contradições de nosso próprio pensamento em relação às questões tecnológicas e consumistas discutidas. Nesse ponto, pelo menos, o livro é um desafio. Daqueles que incomodam um pouco qualquer um que tenha o mínimo de humanidade em si.
Qualityland (QualityLand) — Alemanha, 2017
Autor: Marc-Uwe Kling
Tradução: Claudia Abeling
No Brasil: Tusquets Editores, 19 de março de 2020
354 páginas