Uma das consequências naturalmente menos lembradas da pandemia é o quanto a tragédia mundial ocasionada pela COVID-19 a partir de 2020 tomou os noticiários de maneira tão absoluta que acabou tornando subsidiárias e até irrelevantes todos os demais acontecimentos que, de outra maneira, ganhariam destaque na imprensa. O atentado à vida do político russo Alexei Navalny é um desses casos e o documentário que, de maneira muito simples foi batizado com seu sobrenome, tenta remediar essa questão.
Como aconteceu em 2018 com o agente duplo russo radicado na Inglaterra Sergei Skripal (e com sua filha Yulia), Navalny, durante sua campanha anti-Vladimir Putin, foi envenenado com o agente nervoso Novichok, sendo internado primeiro em um hospital russo e, depois de um esforço internacional, em um alemão, finalmente sobrevivendo ao atentado. Com a confirmação de seu envenenamento pela equipe médica, o que se seguiu foi a investigação sobre o mandante e os executores da ordem por Navalny e pelos grupos investigativos on-line The Insider e Bellingcat, em cooperação com a CNN e o Der Spiegel, com resultados assustadores, ainda que mais do que completamente esperados.
Usando o retorno de Navalny para a Rússia pela primeira vez desde o envenenamento como recurso de enquadramento, o documentário de Daniel Roher parece ter dois objetivos principais, o primeiro deles sendo o de apresentar – ou, talvez, reapresentar – o político ao mundo não russo, especialmente agora, durante a guerra na Ucrânia iniciada por seu inimigo (e, convenhamos, inimigo do mundo) Vladimir Putin, e o segundo sendo o de descortinar os detalhes do que ocorreu desde o envenenamento, com o acompanhamento dos esforços investigativos conjuntos. Diria que, no final das contas, apesar de o documentário ter um excelente e quase inacreditável momento revelador e um final já conhecido, mas, mesmo assim, tenso e forte em seu silêncio, o que realmente funciona no trabalho de Roher é sua tentativa de trazer Navalny de volta ao imaginário coletivo.
Digo isso pois o cineasta, talvez tendo pouco material audiovisual para lidar com o passo a passo do trabalho investigativo, avança muito rapidamente demais com esse lado da história, o que decepciona um pouco. Talvez ele pudesse ter suprido essa falta com reencenação ou até mesmo com o recurso da animação, mas imagino que os custos de produção subiriam a níveis proibitivos. O que acaba acontecendo é que o grande momento climático da investigação – que acontece durante uma ligação telefônica – acaba sendo, lá no fundo, o único aspecto realmente interessante no que se refere à descoberta da máquina por trás da tentativa de assassinato de Navalny. Não se enganem, porém, pois o momento “vale o ingresso”, mas ele vem talvez muito rapidamente demais e com diversas etapas sendo “puladas” pelo documentarista.
De outro lado, o que tenta resgatar Navalny de um possível esquecimento midiático, Roher é mais exitoso, ainda que não totalmente. Sendo bem cínico – minha especialidade – seria perfeitamente possível afirmar que Navalny, o documentário, é uma peça publicitária de Navalny, o político. Mas tudo bem, isso faz parte do jogo e é algo até perfeitamente esperado. O diretor mescla uma entrevista (ou uma série de entrevistas, não sei) dele com o russo com filmagens de arquivo das mais diferentes fontes, sejam celulares de pessoas a bordo do avião em que Navalny quase morre, sejam, claro, do próprio político, sua família e os investigadores. O resultado é que o diretor recoloca Navalny como arqui-inimigo de Putin e uma resposta russa ao autoritarismo do presidente que parece ter saudade da Cortina de Ferro e do poderio geográfico de seu país.
Há até mesmo uma tentativa – não muito entusiasmada, admito – de se colocar Navalny contra a parede quando a voz incorpórea do diretor (ou pelo menos eu suspeito que é do diretor) indaga sobre as conexões do político com um partido neo-nazista russo. Diante do contexto que pinta Navalny como no mínimo um herói folclórico, a pergunta é surpreendente, mas mais surpreendente ainda é a resposta dele, que afirma claramente, ainda que com alguma hesitação, ter dividido o palco com esse pessoal como parte de seu jogo político, como uma forma de se agarrar à oportunidades de aparecer para falar sobre sua campanha. O que chama atenção não é um político fazer conchavos de toda sorte para conseguir o que quer – isso é de rigueur na profissão, infelizmente – mas sim ele basicamente confessar o pecado, mas não pedir qualquer tipo de perdão.
É uma pena, porém, que Roher não continue nessa linha inquisitória, mas, claro, isso sem dúvida faz parte da estrutura conceitual do próprio documentário que pinta um retrato razoavelmente unidimensional e muito positivo de Navalny como a única opção contra Putin e pelo futuro da Rússia. Fica a dúvida se essa mancha em seu passado é apenas algo realmente de ocasião, passageiro, que só aconteceu em determinado momento, ou se há algo mais por aí. Talvez um dia descubramos.
Seja como for, Navalny (o documentário) consegue trazer à tona, com o devido destaque, uma assunto potencialmente relevante para o futuro da geopolítica mundial que acabou soterrado pelas notícias alarmantes sobre a pandemia, deixando mais uma vez evidente o tipo de pessoa que Putin é. Se a obra de Roher surtirá algum efeito prático, se Navalny poderá se beneficiar politicamente dessa exposição, é diifícil de saber, mas fica a torcida para que ele seja pelo menos um instrumento de mudança.
Navalny (Idem – EUA, 2022)
Direção: Daniel Roher
Com: Alexei Navalny, Yulia Navalnaya, Maria Pevchikh, Christo Grozev, Leonid Volkov
Duração: 98 min.