Existe uma nuvem de dúvida a respeito da autoria desse cordel de 1918 (a data talvez não seja muito precisa, mas este é o ano máximo — e mais aceito entre os pesquisadores — em que ele pode ter sido escrito). Por um lado, a possibilidade de que essa história tenha sido concebida pelo grande cordelista Leandro Gomes de Barros; por outro, a atribuição bastante divulgada de que tenha sido por João Martins de Athayde. Como as cópias existentes desse cordel são as que trazem o nome de João (que era editor), acaba-se mantendo essa autoria, visto que é uma indicação palpável, mesmo que contestável, de comprovação de escrita. O que não impede de cogitar-se a possibilidade de Athayde ter se apropriado da obra através de seu poder editorial.
Um dos pontos que devemos considerar aqui é o fato de que, em 1918, o avião (ou aeroplano) era uma grande novidade para todos, e não havia muitas informações divulgadas a respeito de seu funcionamento. Dessa forma, é bastante compreensível que um autor utilize a nova invenção como um meio de transporte ideal para seu personagem até a Lua; uma viagem empreendida por um protagonista de nome Baratão, grande inventor e dono de uma mega oficina capaz de tudo produzir. A temporalidade aqui é outro ponto curioso. Os dois versos iniciais indicam o seguinte: “No tempo de Babylonia / há muitos anos atrás“, o que nos faz pensar em duas possibilidades. Ou o cantador desses feitos se faz ouvir de um futuro muito distante, e essa “Babylonia” é um local qualquer nos anos 1910; ou tudo isso aconteceu em um passado bem diferente daquele que tivemos de fato em nossa civilização.
Mas é claro que essa questão da temporalidade é apenas um capricho. O elemento sci-fi e as pitadas de fantasia nos permitem entender esta ação ocorrida “em qualquer tempo e em qualquer lugar“, importando apenas o cerne da aventura. Localizada ainda nas primeiras décadas da ficção científica brasileira, a trama traz a inocência de sua visão sobre o futuro, mas também elenca problemas atemporais (guerra, massacre, sangue) entre Baratão e sua tripulação versus os habitantes da Lua. Nesse ponto, não pude deixar de pensar numa listinha de aventuras clássicas que trabalharam o mesmo tema com consequências mais ou menos similares, como História Verdadeira (Luciano de Samósata, 165), O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua (Cyrano de Bergerac, 1657), Da Terra à Lua (Jules Verne, 1865) ou algo ainda mais próximo do autor, o filme Viagem à Lua, de Georges Méliès, lançado em 1902.
Essas sagas clássicas de viagens do homem ao nosso satélite natural trazem conflitos às vezes inconciliáveis entre terráqueos e selenitas, gerando, como é dito no cordel, “poças de sangue“. Aqui, porém, o conflito é rapidamente esquecido e não existem maiores consequências ou memória para ele, o que é uma pena. Baratão — aparentemente o único sobrevivente de sua tripulação — consegue andar até a cidade e chega ao palácio de um Sultão. Isso mesmo, um Sultão. O autor imaginou a sociedade lunar com uma visão estereotipada dos “países árabes“, talvez propositalmente temperando o conto com uma atmosfera de Mil e Uma Noites.
Na segunda parte da narrativa, quando Baratão se apaixona e corteja Amante, a filha do Sultão, temos o bloco menos interessante do cordel: uma historinha protocolar de amor, com quase tudo acontecendo como se fosse em um reino qualquer da Terra. Há pouca lembrança de que estamos na Lua, e isso faz o encerramento da história perder parte de seu caráter de viagem para um lugar diferente, mudando apenas quando o autor desafia a qualquer um que achar que ele está mentindo, a “comprovar a verdade“. O Homem que Subiu em Aeroplano Até a Lua aponta possibilidades e junta algo ciência com imaginação numa viagem que não é perfeita, mas é certamente bastante proveitosa.
O Homem que Subiu em Aeroplano Até a Lua (Brasil, 1918)
Autor: João Martins de Athayde
Cordel: edição do autor
16 páginas