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Crítica | As Invasões Bárbaras

Existencialismo cômico.

por Fernando JG
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As Invasões Bárbaras, produzido para ser uma sequência de Declínio do Império Americano, marca o ápice da cinematografia do diretor canadense Denys Arcand, que transforma um punhado de experiências pessoais e ideias criativas num roteiro carregado de um bom gosto ímpar. Este filme-elegia parece ser aquilo que de melhor produziu em sua filmografia. Vamos observar, como pontuo mais calmamente adiante, que ocorre uma bem-sucedida manipulação dos gêneros narrativos numa intenção clara de oferecer complexidade à discussão fílmica. 

Um drama cômico com ares de intelectualidade é o que se vê no decorrer do longa-metragem. Sendo assim, introduz Denys Arcand à sua película uma assinatura própria e uma referência autoral visível. Humor cáustico e irreverente marcam a guinada existencialista da obra. O existencialismo enquanto filosofia do filme não se evidencia através do pessimismo e negatividade, como é típico, mas através de diálogos reflexivos a respeito da vida e da morte, da passagem do tempo, além do próprio clima mórbido da fita que paulatinamente ganha forma, discussão esta sempre permeada por um ótimo despojamento cômico. No drama e na tragédia é o lugar onde quer chegar o enredo de Arcand. 

Em Londres, Sébastien (Stéphane Rousseau) recebe uma ligação de telefone. Sua mãe, Louise (Dorothée Berryman), o comunica que seu pai, Rémy (Rémy Girard), o professor universitário que conhecemos no filme anterior, The Decline of the American Empire (Denys Arcand, 1986), está terminalmente adoecido. Frustrado com o fato de seu pai estar à beira da morte, ele retorna ao Canadá e o encontra às traças num hospital público, e logo o transfere para um de melhor estrutura. Aos poucos acompanhamos o desenrolar de um conflito irreconciliável entre pai e filho: este culpa aquele pelos seus excessos que resultaram no fim do casamento e na destruição da família; e aquele mostra-se ideologicamente avesso aos ideais liberais do filho, uma vez que esse mesmo pai coloca-se numa posição de socialista proto-radical – o que oferece uma inevitável dimensão política ao filme. 

Lentamente, um conflito “anti-edípico” se delineia na relação entre ambos os personagens, revelando mágoas profundas. Com a piora no estado de saúde de seu pai, Sébastien deixa as desavenças de lado e parte em busca de uma droga que ouvira ser infinitamente mais eficaz que a morfina: a heroína. Contrata uma usuária, que faz o papel de “enfermeira” clandestina, e então diariamente aplica a dose em Rémy, que finalmente retorna a vida para viver seus últimos momentos antes que seja enfim consumado os seus dias. 

Como se nota, o longa-metragem busca fazer um movimento evidente: do cômico ao trágico. O primeiro ato, estendido, brinca com o humor e mesmo com a comédia mais histriônica, inserindo elementos dos mais absurdos para trazer ao enredo um tom despojado. Essa primeira parte é, então, um estado de espírito do personagem Rémy, que mostra-se caricato e burlesco até mesmo em situação de hospital. A película nos engana até que, em ritmo lento, ela faz uma passagem calma para um segundo ato, em que se retira a caricatura, promovendo um tom mais equilibrado. É aqui, neste ato, que se dá o encontro de Rémy com seus amigos, que vão visitá-lo no hospital. Sem que percebamos, ocorre a passagem para o trágico, naquele terceiro ato que coloca em cheque a decadência de seu personagem, isto é, o seu declínio.

Ainda, o declínio que se discute aqui é o de uma geração. Uma geração que morre. Naquela cena de fim de terceiro ato em que todos os amigos estão reunidos na casa de campo rememorando tempos de juventude, assinalando como eram revolucionários, existencialistas, feministas, marxistas etc., vemos que a morte é também uma metáfora para o fim das utopias, de ideologias e de sonhos que a princípio pertenciam à geração que viveu a polaridade ideológica e a esperança da vitória de um estado socioeconômico de matriz socialista. O filme é portanto uma elegia porque destila largamente, e em notas calmas, o seu desencanto e o seu tom fúnebre a respeito do personagem e de seus ideais. O tema da morte é central em toda articulação do enredo e em todas as camadas das mensagens fílmicas que se obtêm dessa película.

Os personagens de Denys Arcand são profundamente bem construídos e dotados de complexidade psicológica que dão emoção, melancolia e paixão à história que contam. Vemos com evidência que cada um tem a sua importância. O cineasta opera com sentimentos mais basilares e simples, como a felicidade e a tristeza, e faz transparecê-los através da presença de personagem. Podemos dizer que Rémy, mesmo nos seus últimos dias, parece estar feliz, mas sobretudo conformado diante de seu diagnóstico, por viver e estar ao lado de quem ama, e igualmente seus amigos. Nestes últimos, no entanto, o cineasta deixa um sentimento de pesar e tristeza pela perda de um amigo. Não é a hora da morte em específico que machuca, mas a sua corrosão gradual ao longo de toda a película. A dor é pelo processo, não pela consumação. Ainda, Arcand mostra na face de Sébastian que o seu amor pelo pai é maior do que o conflito travado entre eles – construindo uma relação que é emocionante de assistir.

Essas invasões bárbaras podem ser interpretadas no sentido político dos acontecimentos de 11 de setembro, uma vez que o filme se coloca numa posição de antiamericanismo ou algo do tipo. Mas a sacada de Arcand é fazer deste termo uma metáfora para tudo aquilo que nos invade. Certamente que ele está referenciando a doença pela qual seu personagem Rémy atravessa, ou melhor, enfermidade que o invade. Mas é também a notícia súbita, os amigos, os prazeres no meio do caminho… A vida moderna é discutida aqui com simplicidade e sem nenhuma pretensão de ditar como algo é ou deve ser. Os dias finais de um homem servem como um motivo para uma reflexão filosófica barata, convenhamos, mas interessante, de como a fortuna da vida é. Se é justa ou injusta o curso da mesma, não é um ponto que cabe ao filme discutir. 

As Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares, Canadá, França, 2003)
Direção: Denys Arcand
Roteiro: Denys Arcand
Elenco: Rémy Girard, Stéphane Rousseau, Dorothée Berryman, Louise Portal, Dominique Michel, Yves Jacques, Pierre Curzi, Marie-Josée Croze, Marina Hands, Toni Cecchinato, Mitsou Gélinas, Johanne-Marie Tremblay, Denis Bouchard, Micheline Lanctôt, Markita Boies, Izabelle Blais
Duração: 100 min. 

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