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Crítica | Na Pior em Paris e Londres, de George Orwell

As entranhas miseráveis de grandes cidades.

por Ritter Fan
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O britânico Eric Arthur Blair, nom de plume George Orwell, é óbvia e merecidamente mais conhecido por ter escrito os inegáveis clássicos literários A Revolução dos Bichos (ou A Fazenda dos Animais, tradução direta do título original que vem sendo usada por aqui hoje em dia) e 1984, mas esses foram seus últimos dois romances, publicados respectivamente em 1945 e 1949, já que ele faleceria ainda muito novo, com 46 anos, em 21 de janeiro de 1950, vítima de tuberculose. E as citadas obras são verdadeiras culminações de uma vasta experiência de vida fora e dentro da Europa que resultou em uma enorme riqueza de escritos na forma de artigos, ensaios, panfletos e poemas, além de uma quantidade relativamente pequena de romances, seis ficcionais e três não-ficcionais que fundem os conceitos de livros de memórias e obras jornalísticas.

Quando digo que A Revolução dos Bichos e 1984 foram culminações de uma vida, quero dizer não só no aspecto literário, mas também no literal, já que é perfeitamente possível notar a evolução do pensamento de Orwell que levou às suas duas criações máximas basicamente toda sua produção literária anterior, notadamente seus livros não-ficcionais que informaram de maneira contundente e muito realista sua visão de mundo. Sua primeira obra , aliás, foi justamente Na Pior em Paris e Londres, publicada em 1933, em que ele relata, para o choque de muitos na época, a situação real de pobreza extrema nas duas grandes cidades do título.

A intenção de Orwell, inicialmente, era fazer um relato jornalístico, mas, inspirado diretamente pelo americano Jack London, o autor foi muito além de uma obra desse cunho e passou a viver na mesma situação de penúria quase absoluta tanto em Paris quanto em Londres para poder escrever não como alguém de fora olhando para dentro, mas como alguém que conta a história diretamente da fonte. Obviamente que, como ele próprio diria depois, nem tudo o que ele narra no livro aconteceu exatamente como descrito, pois ele tomou a liberdade autoral de mudar a ordem dos eventos e alterar elementos aqui e ali, mas a substância do que ele viveu e testemunhou nas duas capitais está clara e inegavelmente presente na obra.

Mesmo sendo muito obviamente um livro em que Orwell ainda está “aprendendo” seu ofício de escritor, especialmente de “forma longa”, a voz que o caracterizaria em obras futuras está muito presente. Sua narrativa em primeira pessoa é direta, sem rodeios e sem tentar esconder ou suavizar absolutamente nada, mas sempre evitando abordar o assunto de maneira sensacionalista, barata ou melodramática. Orwell não queria arrancar lágrimas, mas sim fazer de sua obra um alerta para as classes média e alta do que estava acontecendo no ventre dos grandes centros urbanos europeus, cuja imagem, para o mundo exterior, era de exemplo de civilização e desenvolvimento. E ele ter vivido – aparentemente sem concessões – como um homem completamente destituído de posses em meio à pobreza generalizada é uma parte essencial de seu sucesso em fazer o leitor mergulhar em sua narrativa. Nada soa falso, nada soa gratuito e, mais importante ainda, mesmo nove décadas depois, nada soa exagerado ou impossível, ainda que a miséria que ele descreva exista de forma muito pior em diversos países de hoje, especialmente em regiões menos desenvolvidas.

O livro é dividido em duas grandes partes, uma focada em Paris e outra em Londres, com abordagens diferentes conforme a realidade de cada cidade. Ainda que, em linhas gerais – e naturalmente – a luta diária por comida e por um lugar para dormir seja o foco de quase tudo o que Orwell escreve, há diferenças substanciais entre as duas cidades. A narrativa de Paris é mais estacionária, talvez mais “digna” até se compararmos com a de Londres, pois, lá, os pobres da cidade, pelo menos aqueles com quem Orwell dividiu espaço, vivem de estalagem em estalagem com condições que, ainda que muito – mas muito mesmo – longe de serem minimamente ideais, parecem-se com algo de subsistência. Sim, o autor e seus pares momentâneos passaram fome, mas, ao longo do relato, há uma pletora de maneiras diferentes de se conseguir dinheiro para o pão, para o café ou chá ou até para refeições mais completas, com empregos especialmente na cozinha de hotéis existindo para muitos ali.

No entanto, Orwell não economiza palavras e denuncia com veemência as condições absurdas dos empregos temporários em hotéis de luxo que, se pararmos bem para pensar – e isso fica modernamente evidente em The White Lotus – são microcosmos representativos da sociedade. Assim como “ruas sem mendigos” e “cidades sem favelas” disfarçam a pobreza para os mais abastados (e não falo, aqui, apenas dos ricos, mas sim dos trabalhadores da classe média), tornando as cidade mais “bonitas” e “seguras”, o luxo dos hotéis não deixa os hóspedes verem a verdade nos lugares que eles não coabitam, notadamente as caóticas, abafadas e mínimas cozinhas em que o bife de segunda (vendido como de primeira) que cai no chão é lavado em água parada (que já lavou muitas outras coisas) e servido como se nada tivesse acontecido por um corpo de empregados que são explorados tanto no que se refere aos salários baixos – reduzidos ainda mais pela corrupção de seus imediatamente superiores que também são explorados, mas exploram seus pares na mesma medida – como, também, pelo número insano de horas que precisam trabalhar.

Em Londres, o cenário é consideravelmente diferente, pois não há empregos. Os “vagabundos” (e, aqui, estou traduzindo diretamente a palavra tramp que Orwell usa ao longo dessa parte) são como instituições na cidade na época em que o autor viveu entre eles. Com a lei proibindo expressamente a mendicância (por isso escolhi o termo “vagabundo” e não “mendigo” ou “pedinte”) e, também, que os despossuídos dormissem em locais públicos, a “vagância”, no sentido literal e original da palavra, que se refere a “vagar”, “andar sem rumo”, era a regra, com os paupérrimos homens – a vasta maioria era de homens, segundo Orwell – tendo que andar muitas milhas diariamente com estômago vazio para encontrar algum lugar em que pudessem dormir e ter uma refeição minimamente razoável. Parte do que Orwell escreve nesta seção da obra já havia sido publicado antes na forma de um ensaio intitulado The Spike, que se refere a um desses dormitórios públicos em que as pessoas só podiam passar uma noite, tendo que seguir então para outro e assim por diante, e o que ele descreve sobre esses lugares se assemelharia, muito facilmente, à descrição de prisões inumanas, com duplas de “vagabundos” dormindo no chão de concreto e tendo como café da manhã o famoso “chá com duas torradas” que eles pagavam ou com algum tipo de trabalho manual por algumas horas ou, em dormitórios de cunho religioso, sendo obrigados a participar de missas.

Em ambos os casos, vê-se a lucidez de Orwell. Aliás, lucidez só não, pois sua coragem em desvencilhar-se de suas posses e viver em meio a uma vida de incertezas sobre cada dia e passando literal fome em muitos momentos, fome essa quebrada quase sempre por pão dormido (às vezes até com o “luxo” da margarina) e chá frio, é de se destacar. Claro que a pobreza de Orwell era uma pobreza eleita para os fins jornalísticos de sua obra, com um fim em futuro próximo, o que a torna talvez menos horrível, talvez mais palatável, mas a grande verdade é que ele não precisava ter feito assim, podendo assumir uma postura mais externa. Sua escolha em tornar-se uma das pessoas que ele próprio escreveria é admirável por si só, especialmente no mundo moderno em que vemos, todos os dias, especialistas em tudo que vivem confortavelmente atrás de seus teclados, em redes sociais. Mas, sobre sua lucidez, ela é ainda mais admirável, pois desde esse seu começo literário efetivo, Orwell mostra-se alguém capaz de manter sua cabeça no lugar, não partindo para conclusões óbvias, divisivas e, em última análise, inúteis.

Em outras palavras, mesmo vendo o terrível subproduto do capitalismo e mesmo se autoproclamando socialista, o autor revela-se de olhos abertos para evitar radicalismos, os mesmos radicalismos que, hoje em dia, produz as visões tão irremediavelmente “oito ou oitenta” do mundo que não avançam em absolutamente em nada a civilização, muito ao contrário. Sua opinião sobre os problemas e suas sugestões de melhoria partem de observações diretas que ele reconhece serem impraticáveis sem reformas maiores, mas sem que ele seja peremptório sobre o regime político mais afeito a lidar com a situação da pobreza. O que quero dizer com isso é que, mesmo vendo os males gerados pelo capitalismo, Orwell não vê no socialismo ou no comunismo uma solução, pelo menos não da forma que os sistemas foram implantados no mundo. Se, modernamente, condenar um sistema significa abraçar o sistema “concorrente” na cabeça oca de muitos, ver Orwell trafegar entre os dois e, em sua ainda tenra idade (ele tinha 30 anos quando publicou o livro), conseguir enxergar os vícios e virtudes de ambos, mantendo-se crítico constantemente – algo que se tornaria ainda mais profundo em suas obras seguintes) é de um valor enorme, uma verdadeira lição não de isenção (isso não existe, gente), mas de clareza de raciocínio e de capacidade de julgamento sem se deixar influenciar por vicissitudes da moda.

Na Pior em Paris e Londres não é uma obra-prima jornalística, mas é muito claramente um belo de um exemplo de um primeiro livro de um escritor que se tornaria um dos mais importantes do século XX, com obras basicamente atemporais. O que George Orwell relata em seu trabalho de exposição dos sintomas de uma doença muito maior da sociedade moderna foi valioso em sua época e continua sendo valioso nos dias de hoje. No mínimo dos mínimos, seu primeiro livro é um importante mecanismo para abrir os olhos dos leitores e de, no processo incomodá-los com verdades inafastáveis que estão ao seu redor.

Na Pior em Paris e Londres (Down and Out in Paris and London – Reino Unido, 1933)
Autor: George Orwell
Editora: Victor Gollancz
Data original de publicação: 09 de janeiro de 1933
Páginas: 256

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