Independente do que eu tenha achado ou deixado de achar sobre Avatar: O Caminho da Água – e os HALs aí em cima já funcionam como spoilers sobre isso – uma coisa é certa: é um desperdício gigantesco que um diretor de blockbusters do naipe de James Cameron tenha passado 13 anos mergulhado exclusivamente em uma franquia apenas, deixando de dirigir outras obras para enriquecer sua já bastante rica, mas não muito extensa, filmografia. Sob certos aspectos, isso demonstra um grau de dedicação de se tirar o chapéu, mas, sob outros, deixa entrever, ou mais do que apenas entrever, um nível de obsessão fílmica que chega a ser assustador. E, como eu sempre digo, mesmo diante de exemplos maravilhosos de continuações que temos por aí, eu sempre preferirei filmes completamente novos do que ligados a outros preexistentes.
Dito isso, Cameron já provou – se esquecermos Piranhas 2: Assassinas Voadoras que nem é esse horror todo se compararmos com o paupérrimo material base – que ele não só é um mestre na direção de filmes baseados em materiais inéditos, tirados exclusivamente de sua cabeça (O Exterminador do Futuro, O Segredo do Abismo, True Lies, Titanic e Avatar estão aí como provas), como também de continuações, como são os notórios casos de Aliens, O Resgate e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final. Pode ser um exagero dizer que Cameron não faz só Cinema, mas sim muda, sozinho, o Cinema Blockbuster, mas creio que não seja, muito sinceramente, já que poucos cineastas em memória recente tiveram tanto impacto na indústria quanto ele. E, dito e feito, pois, mais uma vez, Cameron prova que ele pode demorar (absurdamente demais, é verdade), mas que ele é um cineasta que não brinca em serviço e que sabe exatamente o que quer, sempre fazendo de tudo para desafiar-se.
Porque sim, como tantos outros cineastas e produtores por aí, ele poderia simplesmente entregar qualquer coisa. O público em geral está pronto para consumir vorazmente o que é essencialmente a mesma obra várias vezes, desde que as versões subsequentes tenham mais explosões, mais exageros e menos cérebro do que a imediatamente anterior, de preferência repleta de frases de efeito e situações esdrúxulas que possam viralizar na forma de memes. Mas Cameron, assim como um punhado de outros especialistas em blockbusters de qualidade que temos por aí – Christopher Nolan, Denis Villeneuve e, claro, o pai de todos eles, Steven Spielberg – não é qualquer um e o que ele faz, mesmo em seus piores momentos, não é nunca qualquer coisa. E isso de forma alguma quer dizer que ele cria obras herméticas ou mesmo complexas, mas sim que unem perfeitamente a tão requisitada diversão à qualidade técnica, indo muito além do “se divertiu, ou cumpriu seu objetivo, então está bom” que nada mais é do que o sarrafo sendo colocado lá embaixo.
Em Avatar, Cameron fez de um roteiro repleto de tropos clássicos do Cinema um arrasa-quarteirão deslumbrante, literalmente transformando o ordinário em extraordinário e cobre em ouro. Na continuação, ele faz a mesma coisa novamente, ou seja, trabalha um roteiro que de forma alguma tem a intenção de explodir cabeças e que em muitos aspectos até repete a estrutura narrativa do longa anterior, mas envelopando o que poderia ser algo meramente comum em uma ambiciosa expansão da mitologia de Pandora, a rica lua do gigante gasoso Polifemo, do sistema Alfa Centauro, habitada pelos esguios e azuis Na’vi que vivem em harmonia absoluta com a natureza luxuriante do lugar.
Pelo menos uma década se passou desde os eventos do longa original e, agora, Jake Sully (Sam Worthington) e Neytiri (Zoe Saldaña), tem três filhos biológicos – o mais velho e calmo Neteyam (Jamie Flatters), o do meio e mais elétrico Lo’ak (Britain Dalton) e a pequena Tuktirey, ou Tuk (Trinity Jo-Li Bliss) – e uma filha adolescente adotada, Kiri (Sigourney Weaver), por sua vez filha biológica da Dra. Grace Augustine (também Weaver) que carrega um mistério sobre sua paternidade, além de um agregado humano, Miles “Spider” Socorro (Jack Champion) que ainda é novo demais para ser recombinado. A família vive em paz no seio da tribo Omaticaya, ou Povo da Floresta, até que, mais uma vez, os humanos chegam para perturbar, desta vez com uma diretriz ainda mais Destino Manifesto de “apaziguar” os nativos, e, claro, com uma surpresa relevante: o Coronel Miles Quaritch (Stephen Lang) e seu pelotão estão de volta como recombinantes, ou seja, com suas memórias e personalidades originais (até o último upload) em corpos Na’vi novinhos em folha. Segue-se, daí, o inevitável e feroz embate que leva a família Sully, para proteger os Omaticayas e se proteger, já que um dos temas do longa é importância da família, a refugiar-se com a tribo Metkayina, ou Povo do Recife, de pele azul mais clara e levemente esverdeada, liderada por Tonowari (Cliff Curtis) e sua esposa Ronal (Kate Winslet).
Tudo isso que descrevi acima não dá conta nem mesmo de um terço do longa, já que o início, apesar de uma narração inicial talvez longa e lenta demais, é consideravelmente movimentado para não só relembrar o espectador dos eventos anteriores, como, também, para apresentar o novo status quo que é, basicamente, o mesmo status quo, só que com mais Sullys e com Quaritch agora mais jovial e consideravelmente mais alto e azul, além de 100% vingativo. Como disse anteriormente, a estrutura narrativa é fundamentalmente a mesma do primeiro filme, com todo o recheio central da obra lidando com Jake e sua família adaptando-se aos costumes dos Metkayinas que vivem em comunhão com a água e a respectiva flora e fauna em um arquipélago paradisíaco que remete às ilhas do Pacífico aqui de nosso planeta moribundo.
Mas é nesse recheio que Cameron faz seu espetáculo. Da anatomia diferenciada dos Metkayinas, levemente menos felina e um pouco mais píscea, passando pelos animais usados para transporte, a versão aquática da Árvore da Vida, a flora e fauna subaquáticas, as cabanas, os figurinos, as tatuagens e tudo mais, a direção de arte e o design de criatura são, novamente, inigualáveis, mas sempre mantendo a lógica perfeita entre o que já conhecemos da lua extra-solar (por exemplo, os peixes tem mais barbatanas que os equivalentes da Terra, assim como os animais terrestres e também voadores têm mais membros), de forma que não se cria estranheza em momento algum em tudo o que é mostrando, ainda que haja esmero absoluto em fazer o queixo do espectador cair. Além disso, acertadamente o cineasta deixa Jake e Neytiri um pouco de lado – afinal, o espectador já os conhece – e passa a focar na dinâmica entre os quatros Sullys jovens, especialmente em Lo’ak, que acaba criando uma conexão especial com o equivalente local de uma baleia azul altamente inteligente, e em Kiri, que tem misteriosas habilidades empáticas completamente fora do comum. E não há pressa alguma nesse miolo narrativo, até porque outros jovens Metkayinas são também apresentados e o núcleo central passa a ser o deles de forma que o espectador esteja plenamente investido neste grupo para que, então, o filme possa retornar à ação.
No entanto, antes de falar da ação que toma o terço final, preciso abordar a computação gráfica. Ao que tudo indica, grande parte do tempo que Cameron ficou dedicado à continuação – e às 128 demais, eu sei – foi para aprimorar a tecnologia de captura de performance e para criar essa mesma tecnologia para capturas submarinas, algo essencial para o que ele queria mostrar e que inexistia de maneira eficiente antes. E é possível que o público mais cínico de hoje em dia, acostumado a ver CGI em absolutamente tudo, não dê o devido valor ao que o cineasta põe nas telonas nesse seu retorno à Pandora, mas a grande verdade é que, da mesma maneira que Avatar representou um salto tecnológico em sua época, Avatar: O Caminho da Água representa outro salto. Não é um salto da mesma distância que o original, mas é definitivamente um salto de respeito, com os Na’vi ganhando um fotorrealismo tão perfeito que não há um segundo que passe em que o espectador “saia” da imersão a que é submetido imediatamente. E as sequências submarinas – uma especialidade de Cameron desde Piranhas 2 – são de deixar qualquer um de boca aberta, sendo mais reais do que documentários submarinos filmados com câmeras de última geração. E notem que, diferente do que cada nove entre dez filmes que pesadamente usam computação gráfica costumam fazer, não há uma só sequência que recorra à escuridão para “esconder” as falhas. Tudo é completamente às claras, com Cameron basicamente desafiando o público a achar alguma coisa menos do que absolutamente incrível em cada quadro.
Sobre a alongada sequência de ação final que vem depois de uma caçada a uma das baleias de Pandora que é uma versão crudelíssima e altamente tecnológica da sequência em que Brody, Quint e Hooper saem atrás do enorme peixe assassino em Tubarão, ela é uma excelente amálgama das lições que Cameron deu e aprendeu em O Segredo do Abismo, Aliens, O Resgate e Titanic. Confesso que tenho dificuldades de lembrar um diretor moderno que filme sequências insanas de pancadaria e explosões tão bem quanto Cameron e ele demonstra sua categoria novamente nesse momento em O Caminho da Água que conta com perseguições submarinas e aéreas, tiroteios, lutas corporais dentro e fora d’água e toda a sorte de momentos empolgantes daqueles que levam a aplausos e gritos de torcida no cinema – a sala em que estava veio abaixo várias vezes! – que devolvem ao Cinema o seu lado espetacular sem ser genérico, sua pegada de fascínio puro sem ser mera repetição do que veio antes. E, melhor ainda, aos que têm receio que o filme não tenha fim, O Caminho da Água conta uma história completa que, naturalmente, deixa as portas abertas para outra continuação.
Sei que já me alonguei bastante, mas não poderia deixar de falar brevemente sobre o 3D, já que Cameron foi, para o mal ou para o bem (mais para o primeiro do que para o segundo, já que Hollywood perverte qualquer coisa…), o responsável por resgatar e aprimorar a tecnologia com o primeiro Avatar. Vale a pena? – alguns perguntarão. E eu, que simplesmente detesto 3D e não assistia mais filmes assim há pelo menos quatro anos, respondo veementemente que sim, vale muito a pena. Avatar: O Caminho da Água foi filmado em estereoscopia – que sim, ainda exige o uso de óculos -, com cada frame e cada ângulo pensado dessa forma, pelo que, aqui, a tecnologia realmente amplifica a experiência. Em uma sequência chuvosa, lembro-me muito bem, cheguei a olhar para o lado que nem um novato idiota achando que estava chovendo dentro no cinema (isso aconteceu de verdade comigo uma vez, então eu tenho desculpa…), só para o leitor ter uma ideia do que Cameron faz aqui. E não, a escuridão que o óculos 3D normalmente proporciona inexiste na continuação como inexistia no original, pois o filme é o tempo todo muito claro, como mencionei acima, outra prova de que o diretor não deu ponto sem nó mais uma vez.
Avatar: O Caminho da Água certamente não trará mudanças para o Cinema como o primeiro filme da franquia trouxe, mas James Cameron, depois de basicamente desaparecer por mais de uma década, mostra que é o mesmo cineasta fora do comum que sempre foi e deixa claro que a pura experiência cinematográfica – aquela com olhos vidrados na telona e mastigando pipoca compulsivamente, sem olhar para o celular e sem pausas a cada 10 minutos – está ainda vivíssima da silva. Só é necessário que tenhamos mais filmes do verdadeiro cinema espetáculo não emburrecedor que, como este aqui, justifiquem e privilegiem esse tão querido ritual que poucos cineastas realmente têm talento para criar.
Obs: Não há cenas nem de meio, nem de fim de créditos.
Avatar: O Caminho da Água (Avatar: The Way of the Water – EUA, 2022)
Direção: James Cameron
Roteiro: James Cameron, Rick Jaffa, Amanda Silver (baseado em história de James Cameron, Rick Jaffa, Amanda Silver, Josh Friedman, Shane Salerno
Elenco: Sam Worthington, Zoe Saldaña, Sigourney Weaver, Stephen Lang, Kate Winslet, Cliff Curtis, CCH Pounder, Jamie Flatters, Britain Dalton, Chloe Coleman, Trinity Jo-Li Bliss, Bailey Bass, Filip Geljo, Duane Evans Jr., Matt Gerald , Alicia Vela-Bailey, CJ Jones, Jack Champion, Joel David Moore, Dileep Rao, Giovanni Ribisi, Edie Falco, Brendan Cowell, Jemaine Clement
Duração: 192 min.