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Crítica | Uma Página de Loucura

O sono da razão produz monstros.

por Fernando JG
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Se a crítica cinematográfica se rende em absoluto ao espírito moderno e genioso de Maya Deren quando concebe o inexplicável e fenomenal Tramas do Entardecer – curta experimental que continua o que a literatura vinha propondo como novas formas narrativas para o século XX – e o credita como precursor da arte de vanguarda é porque lhe passou batido, por inúmeras razões, este filme completo a que se chama Uma Página de Loucura (Teinosuke Kinugasa, 1926). 

Antecipando obras como Um Cão Andaluz, a própria Maya, e também posteriormente a estética de Jonathan Glazer, a quem eu já me dei a permissão de escrever sobre um de seus trabalhos mais brilhantes (The Fall, 2019), Uma Página de Loucura é uma obra-prima redescoberta e que reatualiza o debate em torno do cinema de vanguarda. Assim como Limite, de Mário Peixoto, o filme de Teinosuke Kinugasa perdeu-se logo após o seu lançamento. A fita desapareceu e quando reaparece, chega sem áudio. Anos depois, após as guerras, volta a circular o rolo original. O fato de existir toda uma história por trás contribui para a criação de uma mitologia própria do filme, envolto de mistérios desde o momento em que vem à luz. 

Centrando num hospital psiquiátrico, acompanhamos o desenrolar da história de um zelador (Inoue Masao) que lamenta-se pela condição de sua esposa, internada no local. Ele, enquanto trabalhava como marinheiro, teve a notícia de que ela, num episódio de delírio, teve de ser enclausurada à força. Paulatinamente, observamos um entrecruzar de razão e insanidade que, para além dos ditos loucos que ocupam o espaço, começa a tomar conta da própria figura do zelador, que mergulha num mar de desrazão. Com um roteiro que não se prende à linearidade e clareza do mainstream, a obra manipula uma fórmula fixa de paranóia, entregando uma peça que é o ápice do experimentalismo japonês, de modo a se colocar no lugar de ser a contribuição mais contundente do Japão para a História da Vanguarda Cinematográfica. 

Com o tema da loucura como motivo, o filme apoia-se nisso para estruturar a sua cinematografia, utilizando de procedimentos que acabam por modelar uma obra estranha, proibida e fantasmagórica, em que a ideia de inconsciente é a principal guia da forma do filme. O expressionismo alemão é a base estética em que se fundamentam outras técnicas. É ele quem oferece esse jogo chiaroscuro – mescla entre preto e branco esfumaçado – que confere mistério e obliquidade às imagens e ao drama principal. 

As coisas se confundem ao mesmo tempo que se revelam, mas jamais são claras, isto é, são maleáveis assim como a montagem do filme, que nunca entrega algo de concreto, mas sempre mescla os cortes com rapidez a fim de confundir e provocar um delírio obsessivo enquanto forma, e a isso se coaduna a sobreposição de imagens a se misturar infinitamente. O filme é freudiano e tem na tese da livre associação a resolução formal da trama, ou seja, compõe o enredo majoritariamente a partir de uma livre associação de imagens, beirando um surrealismo, que intentam aproximar do público a experiência do que se chama loucura – motivo pelo que se denomina “Nova Percepção” ou “Sensorialismo” o movimento em que se insere esse filme. 

Essa é uma película onde a técnica é que dita o tom da narrativa. O roteiro aqui é apenas uma obrigação formal para dar materialidade ao enredo do filme. Não é ele que importa mais precisamente, mas antes a livre experimentação técnica com que se trabalha a construção textual diante da tela. Vemos logo que a trilha sonora é parte fundamental para que o filme ocorra. Atuando como uma extensão da narrativa, ela opera insistentemente a provocar os sentidos e intensificar o drama. 

Os personagens propositalmente mal delineados dão espaço para um complexo estudo da loucura através de uma cinematografia intimamente conectada ao tema de que trata. Em vez de focar no éthos do personagem e na atuação, o cineasta prefere fazê-lo refletir através de uma montagem incômoda e revolucionária – eisensteiniana -, de uma trilha deslumbrante, fantasmagórica e incessantemente paranoica, de uma mise-en-scène enclausurante e de movimentos de câmera que, espirais, nos jogam, junto do personagem acometido por surtos de loucura, para uma dimensão em que a razão não existe, mas apenas jogos de espelhamentos, jogos de cenas que tentam mimetizar um estado de desrazão. 

Ao final, observamos uma espécie de vitrine de máscaras que esconde os rostos dos pacientes, fazendo deles padronizados. Com isso, não se distingue loucura ou razão, mas as horizontaliza como se fossem espectros de uma mesma linha, ou um lugar onde a fronteira entre uma e outra é sobretudo tênue. Posto isso, o último corte não poderia deixar de ser ambíguo em si e opta por focalizar o zelador, após atravessar uma epopeia de desrazão, no mesmo local em que está situado no início do longa-metragem, fazendo o mesmo trabalho, num mesmo labor. O filme encerra de maneira cíclica, mas talvez com um outro problema: estaria ele, agora, no papel de paciente e não mais de funcionário? 

No entreguerras, Teinosuke Kinugasa produz um inédito filme para a História do Cinema e do próprio Japão, que vinha até esse momento seguindo uma tradição cinematográfica fechada na cultura local, com temas centrados no imaginário social. Aqui há uma ruptura e uma revolução do cinema japonês, que atinge uma determinada universalidade temática e estética por meio de uma obra moderna que, influenciada por um zeitgeist vanguardista dos anos 1910-1920, mostra-se progressivamente como fundamental e precursora do experimentalismo da arte daqueles anos. Extrema e sensorial, a película abre portas para que filmes como Império dos Sentidos (Nagisa Oshima, 1976) possam ter vazão para testar, até o limite, a forma e a sinestesia enquanto procedimentos de efeito. Desorientando o público por meio de uma cinematografia que mimetiza o fluxo contínuo de paranoia pelo qual atravessa seus personagens, Uma Página de Loucura é um dos maiores exercícios e um exemplo fiel da mimesis no Cinema.

Uma Página de Loucura (Kurutta Ichipeiji, Japão, 1926).
Direção: Teinosuke Kinugasa
Roteiro: Teinosuke Kinugasa, Yasunari Kawabata
Elenco: Masao Inoue, Ayako Iijima, Misao Seki, Yoshie Nakagawa, Hiroshi Nemoto, Minoru Takase, Eiko Minami, Kyosuke Takamatsu, Tetsu Tsubo
Duração: 71 min.

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