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Crítica | The Vow – A Série Completa

A seita do chamado coach mais estranho do mundo.

por Felipe Oliveira
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Ao menos dois aspectos se destacaram quando, em 2017, Keith Raniere teve sua organização derrubada por práticas que envolviam extorsão, tráfico de mulheres, e crimes sexuais: a informação de que as mulheres tinham seus corpos marcados por ferros de cauterização, com as iniciais do nome completo do líder (Keith Allen Raniere), marcas essas com traços semelhantes ao hieróglifo, depois, a participação da ex-atriz Allison Mack na dita seita sexual. Só isso bastou para os veículos midiáticos fazerem de Mack, da antiga atriz da série Smallville, como a cara e o nome por trás de uma polêmica chocante.

O que bem, Mack foi só um nome entre os numerosos artistas de Hollywood que tiveram contato com a antiga organização NXIVM (pronuncia-se nexeeum), empresa de marketing multinível que vendia cursos de aprimoramento e aperfeiçoamento pessoal com o intuito de fazer as pessoas “atingirem a melhor versão de si mesmas” através do intensivo programa de seminários, PSP (Programas de Sucesso Executivo), e que detinha um abismo de abuso, coação e manipulação do seu líder. Foi em 2020 quando a HBO lançou a primeira parte da série documental The Vow, buscando explorar o início da nebulosa organização de autoajuda até as caóticas descobertas que levaram ao seu encerramento.

Traduzindo-se como “o voto“, o título da docu-series faz referência ao subgrupo de mulheres na organização, DOS, que, como garantia para não se desligarem nem denunciarem o que viam, eram coagidas a entregarem alguma informação pessoal comprometedora, como nudes, às suas mentoras, metras ou recrutadoras. Mas o que levou uma empresa multinível fundada em 1998 a se tornar uma grande fachada para as práticas depravadas de seu líder, que promovia uma sociedade secreta de mulheres e adolescentes tratadas como escravas sexuais e tinham seus corpos marcados com sete traços que formavam as iniciais do covarde autointitulado de Vanguarda?

Composta de nove capítulos, resumidamente, a primeira parte da série documental teve como foco contar essa história pela perspectiva de antigos membros e vítimas do NXIVM, e dos principais denunciantes que movimentaram a queda da organização: Sarah Edmondson, Mark Vicente, Bonnie Piesse e Catherine Oxenberg, atriz que tinha sua filha India Oxenberg como uma das escravas sexuais de Raniere. Contudo, explorar um caso complexo em que o chamado “coach mais estranho do mundo” pela revista Forbes, dizia possuir métodos capazes de curar a síndrome de Tourette ao levar seus adeptos a “desbloquearem o verdadeiro potencial” de suas mentes, precisaria de um foco muito maior do que apresentar uma abordagem com mínima edição a fim de trazer relatos da forma “mais crua e intimista possível”.

Quanto mais informações trazia, o material reunido para a série parecia longe de reconhecer que seria incapaz de dar conta de quase vinte anos de uma empresa repleta de fachadas e uma gama de crimes cruéis de Raniere, e a direção de Jehane Noujaim, Karim Amer e Omar Mullick optou pelo pior caminho ao não definir um eixo a ser explorado. Certo de que o formato dos registros revelava a pretensão de trazer um ritmo incessante para a derrubada NXIVM, porém, os relatos figuravam a promessa de uma longa narrativa se estendendo enquanto não se sabia onde chegar. O que às vezes perdia o sentido, mesmo vendo os episódios em sequência, demonstrando que na ideia de ser a docu-series mais completa sobre o caso, faltou senso em considerar ser mais objetiva e menos apelativa.

É interessante notar que embora se tenha o nome de Mack como um dos mais influentes do caso, a narrativa teve o cuidado em desmistificar isso ao não trazer a ex-atriz para o centro, afinal, o caso não girava em torno dela, mas, graças a mídia e sua popularidade, tinha-se uma enorme pressão em saber de justificativas, depoimentos e sua trajetória dentro da NXIVM, e foi ótimo ter essa expectativa contrariada revelando como Raniere se aproveitava de inúmeras pessoas para promover seus crimes enquanto ele encobria sua participação. O dito guru se apropriou de vários outros métodos, como da cientologia, e afirmava ser legítimos e de sua criação para convencer clientes de sua inerente habilidade de guiá-los para o estado mais elevado de si mesmos, e nada disso seria possível se não tivesse atraído a figura número para a efetividade do fraudulento programa: Nancy Salzman, enfermeira, e que tinha conhecimento de técnicas de neurolinguística, incluindo hipnose.

É um leque vasto de informações que a parte um da série documental explorou ao longo de nove episódios, como o fato de que, nos módulos desenvolvidos para o intensivo programa, Raniere inseria tópicos que serviriam para normalizar, tornar aceitável e longe de discussões os crimes que cometia, principalmente quando o assunto era abuso, onde buscava culpabilizar uma vítima que denunciasse tal crime. Ao tempo que prometia um método que “resetaria” uma pessoa ao acessar o dispositivo chave de gatilho que ocasionava transtornos, traumas e ansiedade, era como Raniere estabelecia que qualquer uma dessas condições era só questão de escolha, tudo questão do estímulo-reação que escolhe-se ter no momento que acontece uma situação. A lógica era: e se em um acesso de raiva não escolher ter raiva, e sim outra reação? Construção essa perigosa que induziu muitos a um conflito de submissão e penitência constante visto uma vez que fugisse dessa lógica, e se permitisse a uma reação espontânea, aplicava-se o que ele chamava de “violação da ética”, manipulação também usada quando as mulheres se recusavam a ter relações sexuais.

Mesmo com revelações doentias e absurdas de uma organização nefasta espalhadas por uma montagem confusa, o início de The Vow nunca parecia querer chegar a um fechamento narrativo, e terminava com a promessa de continuar com os relatos numa segunda parte, focada em abordar o julgamento de sete semanas ocorrido em 2021 de Keith Raniere. Agora com seis episódios, a produção retornou com a missão ainda mais complicada, mas funcional ao se concentrar nos argumentos que condenaram Raniere a 120 anos de prisão, numa abordagem pesada e com informações mais perturbadoras do caso.

Para isso, a direção de Noujaim tentou acompanhar o mais de perto possível o andamento do julgamento, remontando as cenas no tribunal com recursos de animação (algo semelhante na série do Starz, Seduced: Inside the NXIVM Cult) e recriação de áudio de depoimentos segundo as descrições divulgadas para acesso público. Soma-se também a participação quase que total de Salzman nos episódios, trazendo dolorosos relatos enquanto esperava por sua sentença. A narrativa foi mais assertiva e pontual dessa maneira, mas ainda soando discrepante ao tentar abraçar tantas ideias e relatos sobre um caso que parece interminável toda vez que surge uma nova informação. Afinal, como seria se as mais de 16 mil pessoas que passaram pelo NXIVM se manifestassem? Teria-se mais vítimas apoiadoras ou denunciantes de Raniere?

Em linhas gerais, The Vow termina de forma satisfatória, com tom conclusivo a longa corrida em 15 episódios sobre a seita  sexual no NXIVM.

The Vow – A Série Completa (EUA, 2020-2022)
Produção: Jehane Noujaim, Karim Amer, Geralyn White Dreyfous, Mike Lerner, Nina Fialkow, Lyn Davis Lear, Regina K. Scully, Nancy Abraham, Lisa Heller
Direção: Jehane Noujaim, Karim Amer, Omar Mullick
Roteiro: Mona Eldaief, Richard Hankin, Chris Hegedus, Pedro Kos (consultores criativos na primeira parte)
Elenco: Sarah Edmondson, Mark Vicente, Bonnie Piesse, Catherine Oxenberg, Anthony Ames, Verónica Jaspeado, Nicki Clyne
Duração: 58 a 55 (15 episódios, cada)

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