- Leiam, aqui, a crítica sem spoilers.
O diretor/roteirista Ryan Coogler recebeu uma tarefa complicada em Pantera Negra: Wakanda para Sempre. A produção tem o ônus de seguir um marco cultural das telonas, amarrar linhas e criar teasers de futuros projetos do UCM e, claro, ser uma despedida amorosa para Chadwick Boseman. É muita cobrança para um filme, ainda mais considerando que Pantera Negra encontrou sucesso justamente em seu afastamento de outras produções da Marvel, mergulhando em sua própria mitologia interna e temas bem articulados de Coogler sobre racismo, colonialismo e representação cultural que seguem sua filmografia.
Esse inchaço parece mais culpa de Kevin Feige do que do cineasta, considerando que muitos dos problemas do longa poderiam ter sido evitados. É claro que ninguém esperava a morte precoce de Boseman, mas se o personagem fosse reescalado, toda a direção narrativa seria completamente diferente, sem precisar abordar o luto com tanta necessidade e sem ter que criar toda uma história em torno de sucessão e legado – isso já não tinha sido feito no primeiro filme, aliás?
Não apenas soa repetitivo para o arco da franquia (e do próprio UCM, que tem feito isso em quase todas as produções recentes…), mas a execução também é corrida. Entendo a comoção extra-fílmica e a homenagem que a Marvel quis fazer ao ator, mas isso acontece em detrimento da qualidade cinematográfica e de um roteiro melhor estruturado. Notem, por exemplo, como Pantera Negra: Wakanda para Sempre é mais sentimental do que político, algo simplesmente imperdoável considerando o potencial da franquia para ir além de ser “mais um filme de heróis”.
Não ajuda as inserções deslocadas de Everett K. Ross (Martin Freeman) e Valentina Allegra de Fontaine (Julia Louis-Dreyfus), que não servem para basicamente nada; da própria Riri Williams (Dominique Thorne), que poderia ter sido substituída por qualquer cientista genérico (ou nenhum cientista, para ser honesto); e da estranha participação de Michaela Coel como uma guerreira das Dora Milaje que só faz piadinhas e tem três ou quatro cenas irrelevantes. Mas, claro, Feige precisa acenar para Thunderbolts, para Ironheart e para a série de Wakanda.
É o que temos, infelizmente. Uma franquia que nasceu de uma voz muito autoral, de uma carência cultural e representativa nas telonas de blockbusters super-heróicos, e de uma liberdade própria para construir seu próprio universo, acabou se tornando outro produto manufaturado. Precisa ser um tributo; precisa ter contextualizações culturais superficiais para não perder a característica com o grande público; e precisa seguir a máquina do UCM. Quando pensamos em tudo isso, o fato de que Ryan Coogler ainda conseguiu tecer um filme pelo menos “ok” e redondinho chega a ser inacreditável. Não irão encontrar excelência por aqui, porém.
A cena inicial do funeral de T’Challa dita o tom do restante da produção. É uma sequência muito bonita, com Coogler articulando bem os costumes e a abordagem ritualística de Wakanda com o sentimento que apenas a melancolia consegue definir. O contexto extra-fílmico traz um impacto, sem dúvidas, mas a cena respira e funciona em sua própria dor ficcional e diegética. A gente sente a tristeza dos personagens e dos atores, mas também o júbilo das crenças de Wakanda em relação ao além vida.
Eu preferiria que a narrativa não tivesse seguido essa direção de filme-tributo, que me soa por vezes óbvia e simples para capturar a imagem de Boseman como catalisador dramático com a audiência, além de subtrair espaços dramatúrgicos diferentes que a história poderia explorar, mas Coogler consegue desenvolver com cuidado a tristeza vaga do luto e conectar isso com diferentes arcos da produção. A morte de Ramonda (Angela Bassett), por exemplo, é de um choque e um impacto arrebatador, com a sequência dela simplesmente boiando se tornando o momento mais visceral de uma produção que tem muita violência.
O que estou tentando dizer é o seguinte: Coogler faz a morte ser sentida de outras formas no filme. Isso é importante, porque o drama não encosta apenas na tragédia de Boseman como muleta para emoção. Gosto também como Ramonda ganha ótima participação e muito tempo de tela antes de morrer, dando mais dimensão e conexão da personagem com o público antes de sua despedida. Eu mesmo me sentia indiferente à Rainha no filme anterior e seus momentos esparsos de protagonismo, mas, aqui, temos um bom desenvolvimento da personagem e grande atuação de Bassett, explorando maternidade, liderança e sacrifício.
Algumas das melhores encenações de Coogler vêm nesses momentos de dor e melancolia, às vezes com uma abordagem que ressoa minimalismo. A cena inicial que citei; o momento na floresta entre Shuri e M’Baku; e especialmente a sequência final de Shuri refletindo na praia sobre a perda do irmão, encontrando algum tipo de paz ou harmonia com seus conflitos internos de raiva e vingança. Desde Fruitvale Station o cineasta se mostra sensível para esses momentos, caminhando numa linha entre emocionar e não manipular o público.
O grande problema dessa linha dramática vem na forma de Letitia Wright. Utilizada apenas como alívio cômico no primeiro filme, é notável como pediram à atriz para fazer mais do que ela consegue nesta sequência. Ela não é horrível, nem nada do tipo, mas é limitada. Não consegue trazer latitude dramática; não expõe muita sutileza ou nuances emocionais; e certamente não tem a presença para ser protagonista. Todos – literalmente todos – os outros personagens principais do filme roubam a atenção quando contracenam com a intérprete.
Vi muitas pessoas pedindo para Okoye (Danai Gurira) assumir o manto. Consigo entender, até porque a atriz manda muito bem no filme, principalmente na sequência que perde seus títulos militares – arco subutilizado e esquecido ao longo do filme, aliás, possivelmente mais interessante e conflitante do que a trajetória de Shuri. Mas acredito que a Lupita Nyong’o seria a escolha perfeita. A atriz tem bagagem, carisma e personalidade como poucos na produção, mas sua personagem é mais uma que fica perdida em meio ao inchaço do filme, aparecendo aqui e ali como suporte de Shuri. Uma pena.
Se a abordagem de homenagem até que funciona, mesmo com as ressalvas que pontuei, os outros aspectos da produção se tornam subsidiários. É aqui que começo a perceber Pantera Negra: Wakanda para Sempre como uma sequência limitada e rasa. O filme anterior é tão politicamente e tematicamente denso. Claro que não é nenhum Moonlight, porque ainda estamos dentro de um produto da Marvel e de alto orçamento, mas o primeiro Pantera Negra é uma obra com diversas camadas fantásticas.
Existe um conflito cultural em torno de Wakanda ter se fechado para nações africanas que precisavam de assistência. Os outros reis, incluindo T’Chaka, foram líderes duvidosos. O protagonista se encontra nesse turbilhão de conflitos ideológicos, com a presença de Killmonger sendo essencial para o arco dramático do personagem. Mesmo em seu extremismo, o antagonista faz sentido em muitas pontuações, e o roteiro vai ganhando essas camadas de ambiguidade, de provocação e de reflexão que vão explorando as pautas sociais e políticas com substância. E o diálogo, nossa, o diálogo é maravilhoso. Nunca me esqueço da frase de Killmonger: “Just bury me in the ocean with my ancestors who jumped from ships, ‘cause they knew death was better than bondage“.
A sequência até faz menção de uma proposta similar, com a premissa da luta pelo vibranium e a cena de Ramonda confrontando outras nações, mas Coogler não cutuca ninguém com um roteiro cheio de obviedades e de caráter expositivo. Notem, por exemplo, as motivações de Namor (Tenoch Huerta) e o contraponto com Shuri. Seu povo foi morto e escravizado, e agora ele quer destruir o mundo da superfície. Shuri perdeu seu irmão para uma doença, e agora quer queimar o mundo. Vingança genérica e ira infantil definem as justificativas dos personagens em uma narrativa sem sutilezas.
Inicialmente, achei estranho temas como poluição de oceanos e destruição do ecossistema não terem sido abordados como motivações para Namor e seu povo, algo que demonstra a superficialidade temática da história. Em segundo lugar, não é nem um pouco natural como Coogler estabelece o conflito entre as nações, sem efetivamente utilizar agentes externos para amarrar as críticas ao colonialismo e para criar algo razoável que vá além da catarse do Seu Madruga de que “a vingança nunca é plena, mata a alma e envenena”.
O roteiro não consegue explorar o ângulo bélico, tampouco o cultural e histórico como força por trás da guerra entre Wakanda e Talokan. É, como proposto no início da obra, uma direção sentimental, que nunca consegue almejar complexidade emocional, temática e geracional, como o filme anterior. É uma pena, porque o conceito mesoamericano e de ascendência maia do povo de Talokan é simplesmente fantástico. É uma reinterpretação do personagem e de seu povo que, na minha opinião, supera a versão dos quadrinhos de uma Atlântida qualquer, além de se conectar com as características culturais e representativas da franquia.
Curiosamente, Coogler acaba falhando na construção de mitologia e nas particularidades de Talokan. Os figurinos são ótimos, a trilha sonora compõe a personalidade da civilização e até as locações simples são bonitas. Mas duas coisas me incomodaram na apresentação da nação: a História desse povo contada como uma apresentação de powerpoint por Namor, contextualizando tudo sem elegância ou paciência; e a sequência que nos apresenta Talokan, com fotografia escura, corte rápidos e a falta de criatividade visual mesmo para estabelecer a capital como algo distinto. Me esqueci de Talokan no minuto que a cena terminou.
O cineasta já mostrou sua qualidade com elementos culturais, então é estranho sua abordagem quase displicente com Talokan. Felizmente, Coogler mostra aperfeiçoamento em outro departamento: as set-pieces. Se o filme anterior é bastante limitado nesse sentido, a sequência demonstra mais inventividade por parte do diretor em cenas grandiosas. O destaque fica para o primeiro ataque em Wakanda, que Coogler transforma num filme de desastre e para os jogos de câmera divertidos de Namor pelos céus.
Sinto que faltou escopo para uma guerra entre as duas nações, em tese, mais poderosas do mundo, com uma estratégia estranha de Wakanda ao decidir lutar no mar com um navio, mas até mesmo aquela set-piece é melhor dirigida do que a luta interna no primeiro filme. O combate entre Namor e Shuri tem sua força e uma agressividade que surpreende, apesar da falta de porte de Letitia Wright e do drama um tanto clichê em torno de vingança.
Pantera Negra: Wakanda para Sempre é uma bonita homenagem a Chadwick Boseman, mas deveria ter sido muito mais do que isso. Um filme-tributo não é o bastante para seguir o marco cultural que assistimos em 2018. Muito sentimental, inchado, sem presença protagonista e com uma narrativa superficial, a produção não almeja a profundidade temática e dramática do primeiro filme, falhando em desenvolver a mitologia de Talokan, deixando de trazer substância política inteligente e caindo em certos parâmetros comuns e problemáticos do UCM com filmes divertidos que ficam preparando futuros projetos. O desfecho com o filho de T’Challa chega a ser apelativo, para uma produção que quis focar tanto na perda de seu astro e em sua sucessão, que acabou se esquecendo que o Pantera Negra é maior, mais importante e mais simbólico do que seu intérprete.
Pantera Negra: Wakanda para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever – EUA, 2022)
Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler, Joe Robert Cole
Elenco: Letitia Wright, Lupita Nyong’o, Danai Gurira, Winston Duke, Dominique Thorne, Florence Kasumba, Michaela Coel, Tenoch Huerta, Martin Freeman, Angela Bassett, Mabel Cadena, Alex Livinalli, María Mercedes Coroy, Julia Louis-Dreyfus
Duração: 161 min.