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Crítica | Decisão de Partir

Em thriller romântico assexual, Park Chan-wook cria uma tragédia moderna sobre a impossibilidade carnal de consumar a traição.

por Michel Gutwilen
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Uma morte a ser desvendada; um detetive é convocado; uma suspeita ou envolvida com o falecido se revela; esta mulher envolta de mistério atrai o detetive; as linhas entre o irreal do desejo e a realidade dos fatos se borram; a parcialidade do amor turva a visão da imparcialidade racional; a investigação da morte se confunde com o despertar de um romance. Estamos falando da sinopse de Decisão de Partir, de Park Chan-wook, mas também de uma centena de filmes que já datam mais de setenta anos no meio hollywoodiano com o noir e suas femme fatales, encontrando posteriormente seu apogeu em cineastas como Alfred Hitchcock e Brian de Palma, capazes de elevar tais pulsões a um nível onírico, em que seus protagonistas são absorvidos por jogos de espelhos, aparências e pontos-de-vista até se perderem na própria busca.  

Contrário aos impulsos da carne que já moveram tantos detetives dos exemplares deste gênero, e inclusive sendo um elemento que faz parte da própria filmografia de Chan-wook, seu novo longa se filia a um cenário global de castração e purificação das relações nas artes — o que o próprio diretor admite em uma entrevista, justificando querer atingir um público mais amplo. Se a fala de Chan-wook é minimamente lamentável por mostrar seu tom conciliador com um estado assexual de cultura que deveria ser combatido e a demonstração da venda de suas crenças ao comercial, a verdade é que devemos julgar o filme enquanto objeto isolado, sem ser influenciados por suas falas. Por isso, mesmo que pelos motivos errados, esse caminho da castidade fez de Decisão de Partir um caso curioso, pois permite levar o tropos hitchcockiano e seus signos visuais para um novo lugar, intercalando seu lado detetivesco com a dramédia romântica — uma boa alusão pode ser considerá-lo uma versão mais séria de Abaixo o Amor, de Peyton Reed. 

A partir disso, é curioso como Decisão de Partir é um romance que é uma constante lembrança de sua premissa casta, que culmina numa impossibilidade trágica de consumação carnal da traição. A segunda cena do filme mostra o protagonista Hae-jun tendo uma conversa com sua mulher sobre uma estatística de que os casamentos em que não há atividade sexual uma vez por semana estão fadados ao fracasso. Contudo, o que se desenrola na trama é a contraprova desta tese, já que Hae-jun começa a iniciar uma lenta paixão anti-matrimonial onde a traição existe no campo das intenções, jamais carnal, a todo tempo ameaçando se consumar apenas com um beijo, eternamente postergado. Em contrapartida, a suspeita Seo Rae, cujo marido foi assassinado, tenta seduzir o detetive, ao mostrar para ele a parte oculta de sua coxa arranhada, e a cena que em tese seria de cunho sexual, é rapidamente transformada em um momento de constrangimento, quando outra policial entra na sala. 

Inclusive, vale dizer que, no mesmo sentido, a violência típica ‘chan-wookiana’ também é suavizada a partir da sua quebra pela comédia, o que fica bem explícito na cena em que Seo Rae está vendo as fotos de cadáveres guardadas por Hae-jun, que por sua vez descreve processos biológicos escatológicos, e enquanto isso estão ambos preparando e comendo um prato de comida, com Chan-wook contrapondo comicamente as sensorialidades.

Se falta pulsão sexual em Decisão de Partir, o que define então essa trajetória que flerta com a traição? Na verdade, este movimento é mais definido por uma possível aversão à própria ideia de monotonia do casamento e do cotidiano, do desejo de se estar em outro lugar que não é a realidade. Curiosamente, ao filme interessa tudo, menos mostrar a vida cotidiana de Hae-jun, quase como um fardo que é deixado de lado. Até por isso, boa parte dos jogos manipulativos de Chan-wook se justificam sob a égide deste argumento: Hae-jun nunca está no presente e no agora, mas sempre se projetando em outro lugar. Seja quando o protagonista se teletransporta mentalmente para suas re-encenações mentais das investigações, seja quando a montagem do filme quebra a linearidade para fazer um vai-e-vem entre presente e futuro, percebemos o padrão de uma negação da própria realidade, motivo pelo qual ele também se dedica boa parte do tempo as suas atividades de tocaia, pois observar a vida alheia é bem mais interessante do que a sua. Porém, acima desse ato de fugir de si mesmo, essas re-encenações mentais também fazem com que ele se aproxime de Seo Rae em um campo espiritual, movendo o pathos platônico do filme neste campo da imaterialidade.

Deste encontro dos temas da impossibilidade de consumação do amor no campo físico com a diluição da realidade, progressivamente aniquilando a possibilidade de um amor material através dos corpos, eis que se encontram localizados também dos excessivos aparelhos tecnológicos que vão se fazendo presentes na progressão da narrativa. O principal deles é a recorrência do uso do aparelho celular para traduzir as falas chinesas de Seo Rae para o coreano, artifício que vem sendo usado cada vez mais no cinema contemporâneo para evidenciar o distanciamento entre os personagens pela barreira linguística. Entre outros exemplos, poderíamos pensar no uso constante dos personagens, como registro de um diário vocal, por seu Apple Watch, agente tecnológico mediador da solidão. Não vemos o “eu te amo” de Hae-jun ser proferido no presente, mas a posteriori pela sua gravação gravada na tela.

Para Park Chan-wook, pensar na decupagem das cenas é também uma questão de propor o deslocamento e afastamento de seus personagens a um nível visual e um momento chave disso é na cena do interrogatório. Se pensássemos em uma decupagem tradicional, um diretor poderia apenas se limitar a planos e contraplanos e a um plano geral que mostre os dois no mesmo quadro. Ao invés disso, muito inventivamente, Chan-wook usa de desfoques e cria diversas split-screens no mesmo plano, a partir do espelho, dos monitores de TV do outro lado da tela e dos planos “objetivos” para colocar Seo Rae e Hae-jun, mesmo que juntos materialmente, em diferentes mundos imagéticos, como que incomunicáveis. Dentro dessas manipulações e na progressão da narrativa investigava, Chan-wook vai repetindo o tropos hitchcockianos da história que se repete duas vezes como farsa, que aqui existe no assassinato duplo dos maridos, para culminar no desencontro derradeiro, ápice final desta tragédia, onde os dois estão literalmente no mesmo lugar, mas em mundos diferentes. Um acima, outro abaixo.

Deveria ser desnecessário afirmar isso, mas como o espectador moderno cada vez mais se rejeita a consumir aquilo que data anteriormente aos últimos dez anos e a todo tempo exalta como revolucionário aquilo que não é nada de novo, é preciso deixar claro que a nova obra do diretor sul-coreano não é nada mais do que apenas um bom exercício de gênero já consolidado, com algumas atualizações (a presença do zeitgeist tecnológico) e subversões (a recusa da sexualidade do gênero em detrimento do romance puro), sendo um objeto mais curioso justamente por ser um certo símbolo consciente dos tempos atuais, sexual e tecnologicamente. E está tudo bem ser só isso, não precisamos de histeria para falar de todo lançamento que sai, como se fosse o melhor filme de todos os tempos da última semana.

Decisão de Partir (Heojil kyolshim / Decision to Leave, 2022) — Coréia do Sul
Direção: Park Chan-wook
Roteiro: Park Chan-wook, Chung Seo-kyung
Elenco: Tang Wei, Park Hae-il, Lee Jung-hyun, Park Yong-woo, Go Kyung-pyo, Kim Shin-young, Yoo Seung-mok, Jung Yi-seo, Jung Young-sook, Lee Hak-joo, Park Jeong-min, Jeong Ha-dam, Seo Hyun-woo, Yoo Teo, Jeong So-ri
Duração: 138 mins.

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