Orson Welles e Marcel Proust são dois grandes nomes da memória cultural e ambos nos servem de epígrafe para iniciar esta reflexão sobre Cinema, Turismo e Cultura da Convergência. O primeiro, cineasta conhecido por Cidadão Kane e outros grandes clássicos do cinema hollywoodiano, afirmou que “O cinema não tem fronteiras nem limites”, pois é “um fluxo constante de sonho”. Já o renomado escritor francês, autor de Em Busca do Tempo Perdido, alegou que “a verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ver as mesmas coisas com novos olhos”. Em linhas gerais, o que estas duas referências colocam nos permite refletir sobre os caminhos adotados pela indústria cultural no processo de estabelecimento de praticas culturais inovadoras, antes segmentadas, agora mescladas numa espécie de processo tomado por sinergia, onde bens culturais passam a ser recursos promocionais para outros bens de consumo, isto é, livros levam públicos para as salas de cinema, o cinema estabelece destinos turísticos, tais como parque de diversões e museus, dentre outras trocas repletas de simbolismo e poder de atração.
Como a ficção audiovisual é um recurso potencialmente poderoso por mexer com o nosso imaginário, os consumidores não querem apenas assistir ao filme, mas sentir a sua atmosfera indo aos locais de filmagens, tocar nos cenários e locações, enfim, amplificar os lucros de um segmento economicamente rentável e dar vazão aos seus desejos mais diversos. Dizem que o empreendedor e inovador Walt Disney foi um dos pioneiros desta jornada que hoje é fenômeno no mundo inteiro, com pessoas engajadas ao comprarem pacotes para visitar os espaços das filmagens de Game of Thrones, na Croácia, ou passear pelo litoral onde Steven Spielberg dirigiu as cenas do clássico Tubarão, uma referência do subgênero horror ecológico. No segmento slasher, em profusão desde o final dos anos 1970, há também uma série de opções de visitas ao lago de onde Jason saiu pela primeira vez no pesadelo da final girl de Sexta-Feira 13, bem como a possibilidade de visitarmos a casa em que Michael Myers assassinou a sua irmã Judith Myers em Halloween: A Noite do Terror, foco da nossa breve, mas elucidativa reflexão, exposição que voltaremos mais adiante, próximo do desfecho deste artigo, combinado?
Tais processos nos levam ao terreno conceitual da Cultura da Convergência, termo cunhado por Henry Jenkins que dialoga com alguns fenômenos da relação entre cultura e consumo: o uso complementar que as diferentes mídias nos proporcionam, a inteligência em coletividade e a produção participativa no âmbito da cultura. Vivenciamos momentos culturais focados na estimulação da nossa imaginação, num processo que permite o estabelecimento da sensação de que fazemos parte do universo que apreciamos. O modo tal qual as mídias circulam em nossa cultura e a relação de poder entre os produtores de determinados conteúdos e o consumidor atravessam um delicado limiar moldado a cada interação, numa linha tênue que no bojo desta reflexão, desagua num fenômeno cada vez mais crescente, potencializado pelas ofertas da nossa incansável indústria do entretenimento, onde locais comuns são transformados em atrações e destinos, potenciais vetores para parques e locais temáticos atraentes e lucrativos.
Aqui, versamos sobre o Cineturismo, termo cunhado pelos italianos como Movie Tourism e para os estadunidenses como Screentourism, terminologias encontradas no dinâmico e objetivo livro de Flávio Martins e Nascimento, Cineturismo, disponível no formato de bolso para permitir melhor mobilidade para os seus leitores. Basicamente, este termo designa formas de turismo que se baseiam na visitação a locais onde são produzidos filmes. O interesse dos envolvidos é conhecer a terra dos seus sonhos, contemplada apenas pela tela, um território pensado como idílico, tendo em vista sentir as experiências vivenciadas nas narrativas tão amadas, numa busca pelas mesmas sensações experimentadas pelos personagens. Assim, o visitante assume o papel das figuras ficcionais admiradas, se mantendo antenado com a plenitude do momento, numa tentativa de alcançar o máximo de prazer sem se importar se aquilo tudo é real ou simulacro, como numa das brincadeiras de infância, onde tudo é possível, basta se entregar ao poder da imaginação.
Nesta dinâmica, imagens aguçam a curiosidade e o turista, um peregrino contemporâneo, busca na realidade uma vivência conforme os fatos que constam no painel de seu profícuo imaginário, num esquema que é característico da globalização que pasteuriza culturas e cria um complexo processo de entretenimento com múltiplas esferas de mediação. Ao indagar, agregar imagens, instigar imaginários e sensações, o cinema, nas palavras de Charles Chaplin, não importa para os espectadores enquanto demonstra o que não é realidade, mas sim o que destas narrativas podemos extrair de maneira imaginária. Refletindo tal afirmação dentro do panorama do Cineturismo, precisamos compreender que nesta configuração, não se crê no imaginário, mas face aos elementos que compõem a Cultura da Convergência, vive-se nele, num reforço do capitalismo e da indústria cultural, cada vez mais ofertantes de setores e serviços, tendo em vista atender ao que é demandado pelos consumidores afoitos por novidades. Aqui, percebemos o quão os meios de comunicação e esta modalidade industrial são indissociáveis, algo que o teórico de linha marxista Frederic Jameson denominou como capitalismo high-tech.
Como exposto, é um sedutor e rentável esquema mercadológico: determinados pontos de Minas Gerais e as locações das séries Hilda Furacão, JK e Memorial de Maria Moura, as belíssimas paisagens da Nova Zelândia e os espaços de filmagens de O Senhor dos Anéis e a já mencionada Game of Thrones, bem como as vinícolas de Santa Barbara, nos Estados Unidos, amplamente visitadas após as filmagens de Sideways: Entre Umas e Outras, ou o interesse pelas locações orientais de Encontros e Desencontros, dirigido por Sophia Coppola, tão empolgantes quanto os circuitos de Sex and The City, filmada em Nova York, todos estes, processos da convergência que adentrou no terreno da cultura e cria cada vez mais demandas, como veremos na mais simplória, mas também atraente visita aos locais de filmagens de Halloween: A Noite do Terror, em especial, a casa de Michael Myers, o antagonista slasher criado por John Carpenter e Debra Hill no filme de 1978, ponto de partida para um robusto universo cinematográfico.
No caso desta produção associada ao campo do Cineturismo, sabemos que a trama se passa em Haddonfield, em Illinois, mas a maioria das passagens foi gravada em South Pasadena, um espaço de arquitetura estadunidense simples, situada a 8 km da região central de Los Angeles, lugar onde a produção precisou se organizar para realizar o filme, haja vista a dinâmica orçamentária apertada e um calendário bastante conciso. A ideia era promover uma história que fosse de encontro aos clichês góticos de espaços assombrados em regiões longínquas, isto é, o que a direção de fotografia de Halloween: A Noite do Terror capta é o bairro seguro, de ruas tranquilas e arbóreas, um lugar que se imagina que nada pudesse dar errado e que a sensação de segurança fosse exponencial. Atualmente, a famosa Casa de Michael Myers é destino de muitos fãs da franquia, um lugar para visitações, onde os turistas pedem constantemente para subir as sombrias escadas da abertura, aquela cena que antecipa a morte de Judith Myers.
Passear por estes espaços, sentir-se como um dos personagens do filme de 1978 é a sensação que estas pessoas tem ao adentrar nesta casa que, inclusive, foi salva de um projeto de demolição depois que o filme foi lançado e fez estrondoso sucesso de crítica e de público. Outras ambientações também se tornaram icônicas e parte dos mapas turísticos de quem passa pelo local: a Oxley Street e a Fourview Avenue, circuitos por onde Laurie Strode, interpretada por Jamie Lee Curtis, juntamente com as suas amigas, atravessam antes do fatídico encontro com Michael Myers na tenebrosa noite do Dia das Bruxas. Tais ambientes são frutos de destinos do Cineturismo mais discretos que as demais produções mencionadas anteriormente por aqui, mas também funcionam como lugares onde a imaginação amplifica as sensações de seus visitantes, indivíduos que sentem o enorme desejo de adentrar na ficção para extrair emoções genuínas, trazer para a sua realidade aquilo que foi contemplado na arte, numa dinâmica que lembra bastante A Rosa Púrpura do Cairo, uma das mais esplendorosas cartas de amor ao cinema, escrita e dirigida por Woody Allen com muito esmero, tal como fez John Carpenter no preâmbulo de sua carreira, ao nos entregar o misterioso Michael Myers, um assustador antagonista slasher.