Home Colunas Entenda Melhor | John Carpenter, Halloween e a Crítica de Cinema Acadêmica

Entenda Melhor | John Carpenter, Halloween e a Crítica de Cinema Acadêmica

Um panorama do clássico slasher de 1978 sob o ponto de vista da crítica de cinema acadêmica.

por Leonardo Campos
511 views

A crítica de cinema possui diversas vertentes, não sendo apenas uma manifestação discursiva do jornalismo cultural. Para alguns, é um guia de consumo, para outros, uma análise que permite o registro histórico de correntes de pensamento e reflexões em pontos específicos da história. Na esteira do lançamento de Halloween Ends, o último filme da nova trilogia do universo de Michael Myers, âmbito criado desde 1978, apresento aos leitores o ponto de vista acadêmico deste slasher que segundo críticos, especialistas e fãs, é um dos principais pontos de partida para o fortalecimento deste profícuo subgênero dos filmes de terror. Diferente das críticas de cinema jornalísticas, mais livres, o texto acadêmico geralmente pede alguns elementos que associam a análise ensaística do autor com referenciais teóricos que forneçam subsídios para as teses levantadas. Alguns são artigos, outros trabalhos de conclusão de curso, noutros casos, dissertações e teses, envolvendo cursos de mestrado e doutorado. Para a reflexão em questão, selecionei oito produções acadêmicas que analisam Halloween: A Noite do Terror, de 1978, diretamente ou tangencialmente. Há trabalhos bem amarrados, com desenvolvimento elucidativo, tal como outros que não demonstram muita qualidade, mesmo que tenham atravessado um conselho editorial para ser publicado no nicho das revistas acadêmicas, vinculadas ao terreno de instituições universitárias, um campo de realização muitas vezes quase feudal, onde burocracias dominam e o “quem indica” também se faz presente.

Aos leitores, uma boa viagem. Aqui foram considerados textos publicados no Brasil, em língua portuguesa, numa variação entre artigo, TCC e Dissertação de Mestrado. Acompanhe.

Orientado pelo professor Nilton Milanez, o pesquisador João Pedro Santos Oliveira publicou, em 2019, na revista Diversidades, uma análise da personagem Laurie Strode sob a perspectiva teórica de Michel Foucault. Em sua abordagem, intitulada Garotas Até o Fim! Genealogias do Corpo de Mulheres em Filmes de Horror (1974-1984), o autor foca em três protagonistas do subgênero slasher, delineando o perfil de uma final girl e propondo uma observação da genealogia corporal interna destas personagens, tomando como objeto, as figuras ficcionais de Halloween: A Noite do Terror, O Massacre da Serra Elétrica e A Hora do Pesadelo, sendo estas duas últimas produções as narrativas que ganham mais destaque na tese desenvolvida pelo pesquisador. Ao longo do texto, Oliveira explica que a tal genealogia é a forma como os acontecimentos narrativos afetam, modificam e moldam o corpo destas personagens mulheres, numa reflexão que tem como recorte, algumas sequências destes filmes, agrupados diante de singularidades no que tange aos aspectos representativos destes corpos femininos.

Michael Myers, um observador à distância, adentra o terreno das monstruosidades e representa tópicos como loucura e criminalidades, temáticas comuns ao campo discursivo do teórico que centraliza o artigo, Michel Foucault. O embate entre Laurie e Myers, é então, descrito como um processo de subjugação e enfrentamento da mulher diante de procedimentos de controle do seu dizer. O corpo, não apenas tido como uma prática objetiva, mas uma questão discursiva, surge em Halloween: A Noite do Terror de maneira sutil, por meio de uma garota vestida, com roupas intactas, cabelos contidos e sem nenhum tipo de ferimento visível, desta maneira, repleto de enunciações. Mais tarde, no último ato, as coisas se transformam e ao ser perseguida pelo antagonista da trama, Laurie Strode tem em suas primeiras cicatrizes as marcas que sintonizam o seu interior com seu exterior. Ao passo que o filme avança, a protagonista se degrada visualmente, num nível enunciável que reflete o impedimento e a privação da mulher em eventos que exigem força, tática e gerenciamento de si. Em linhas gerais, quando tece comentários sobre o filme de John Carpenter e Debra Hill, o autor se volta ao processo de inserção do moralismo na história, compreendendo Michael Myers como o aniquilador em nome do tradicionalismo.

Publicado em 2022, o artigo A Literatura Remediada Nos Filmes e Séries Slasher: Uma Abordagem Intermediática, adentra pelos estudos da intermedialidade, tendo como foco analisar o subgênero em questão por meio de hipóteses sobre as suas referências literárias. Ao trazer considerações sobre a impureza do cinema, de André Bazin, um dos grandes nomes da teoria do cinema, a análise fala sobre contaminação entre mídias, num passeio que versa sobre as primeiras adaptações literárias, uma convocação constante da sétima arte desde os seus primórdios. Tendo também a teórica Carol J. Clover como parte do escopo de seu referencial, o autor, em linhas gerais, analisa algumas hipóteses sobre o uso da literatura no slasher, num texto interessante, mas um pouco desorganizado estruturalmente. Discute-se a origem do subgênero, por perspectiva de autores distintos, numa reflexão sobre O Massacre da Serra Elétrica, Noite do Terror ou Halloween: A Noite do Terror, filmes que dividem as opiniões sobre o posto de ponto de partida para formatação do slasher.

Seria uma busca por legitimação o uso da literatura no slasher? Esta, talvez, seja a pergunta norteadora deste artigo, produção que também traz como hipótese deste uso pelo fato do público alvo destes filmes abarcar estudantes adolescentes, mergulhados em estudos literários em suas missões escolares, refutada no desfecho do artigo, mas desconsiderada por quem vos escreve desde as primeiras linhas da abordagem sem sustentação. A questão da metalinguagem, refletida de maneira mais sólida na discussão, se demonstra como a escolha mais assertiva sobre as possíveis intenções dos realizadores deste segmento ao explorar literatura em suas tramas sangrentas. Ademais, sobre Halloween: A Noite do Terror, há uma passagem interessante sobre o trecho em que Laurie Strode, distraída, sente a presença de Michael Myers do outro lado da rua, vislumbrando, desde então, o seu destino, tema debatido durante as interações da professora responsável por discutir o tópico em sala de aula. Em diálogos sobre não ser possível escapar do destino, materiais da literatura se fundem com o cinema, numa demonstração da intermedialidade, isto é, a lógica formal pela qual as novas mídias remodelam formas de mídias anteriores, num processo constante de diálogo e transformação.

Ainda sobre o artigo, há uma passagem também memorável sobre o destino ser algo natural, um elemento tal como ar, água, terra e fogo, aplicado ao antagonista da narrativa, pois Michael Myers seria, alegoricamente, uma nêmesis que gera obsessão, como Abraham Van Helsing é no clássico Drácula, de Bram Stoker, e o capitão Ahab é, no clássico Moby Dick, de Herman Melville, diante da baleia norteadora do romance. Sendo o mal puro, Michael Myers não deixa de ser, como nestas referências literárias, uma força da natureza.  O lado maléfico do antagonista também é destacado no artigo Jovens Pecadores: Culpa, Punição e a Moral Cristã no Cinema Slasher, de Giancarlo Backes Couto e André Conti Silva, reflexão que discute a moralidade do cristianismo no subgênero em questão, numa tese que reforça a questão da purificação social por meio de Michael Myers, a figura assassina que castiga aqueles que fogem dos códigos acerca dos bons costumes. Além de analisar as características do slasher, o artigo desenvolve observações de cenas pontuais dos clássicos Halloween: A Noite do Terror, Sexta-Feira 13 e A Hora do Pesadelo, tendo como base considerações sobre a moral extraídas da filosofia de Nietzsche, Santo Agostinho, Ricouer, dentre outros.

Carol J. Clover também é referência para o delineamento do caráter punitivo do slasher, destacando o filme de John Carpenter especificamente na cena de sexo entre Lynda e seu namorado, a passagem de sexo seguida do assassinato da dupla. Sexo e moral, então, são refletidos dentro da ótica das moldurações autenticadas, elementos escolhidos como segmento de análise. Fumar, beber e fazer sexo, neste caso, os leva ao enfrentamento das consequências. A produção em questão, de 1978, também é mencionada muito brevemente no artigo A Violência no Cinema de Terror Americano na Década de 1980, reflexão que aborda a ascensão do slasher e a evolução da violência na história recente do cinema. Assinado por Daniel Lucas de Medeiros e Ramayana Lira, o texto discute o conceito de gênero cinematográfico, a violência como parte integrante da sociedade ocidental desde a formação de seus mitos fundadores, numa abordagem que destaca o lado hiperbólico e elíptico das cenas violentas na arte do século XX.

O hiperbólico seria as cenas de morte e sangue graficamente fortes, enquanto o elíptico, presente durante muitos anos de Código Hays, deixava a violência implícita, apenas na imaginação, para que os filmes fossem aprovados e não censurados. Halloween: A Noite do Terror, neste caso, tornou-se um ponto de partida ainda leve para o banho de sangue no slasher nos anos seguintes. Golpes desferidos nas vítimas destes filmes também ganham espaço no artigo O Corpo Feminino no Cinema de Horror: Representações de Gênero e Sexualidades nos Filmes Carrie, A Estranha, Halloween e Sexta-Feira 13, de Gabriela Muller Larocca, graduada e mestra em História pela Universidade Federal do Paraná. O texto reflete os fortes elementos de violência envolvendo os corpos femininos nos filmes em questão, relacionando as vítimas mulheres com o conservadorismo que tomou os Estados Unidos na época, uma reação contra a sexualidade, momento de defesa em prol da família, da maternidade, em linhas gerais, do tradicionalismo. Aspectos do mal, em associação com os medos, incertezas e inseguranças do contexto destas produções permeiam a análise publicada em 2014. São filmes em consonância com a política da época, alegóricos das problemáticas culturais de seus respectivos períodos. Diferente da abordagem mais libertária sobre o sexo no cinema europeu, as produções estadunidenses tratavam as manifestações dos desejos sexuais por meio de tabus, como o slasher, subgênero que de acordo com as abordagens de diversos críticos, punia os “maus costumes”.

Num panorama histórico dos filmes de terror e suas ousadias temáticas ao longo do século XX, a autora comenta o impacto que as realizações deste segmento causam nas pessoas, em especial, pelo fato destas narrativas captarem ansiedades e temores culturais de tal maneira que os medos e ansiedades coletivas pareçam projetados nas telas dos cinemas. A história dos filmes de terror, segundo o artigo, está associada ao processo de estabelecimento da ansiedade no século em questão, delineando posteriormente as bases do slasher, um subgênero interpretado como fruto da década de 1970, mas antecipado com tramas que já ensaiavam o seu formato na posteridade. A análise começa com Carrie: A Estranha, passando logo depois para Halloween: A Noite do Terror, num painel que expõe aspectos do roteiro e seus desdobramentos temáticos, tais como o horror estabelecido num subúrbio estadunidense aparentemente calmo, com belas casas, ruas arborizadas, um lugar onde nada, em tese, desandaria, mas que se torna um ambiente de pânico com o império de medo anunciado por Michael Myers. Assim, o medo exposto na tela pode acontecer a qualquer momento, com qualquer pessoa, o que transforma a narrativa numa exposição de situações que nos tiram da nossa zona de conforto do lado de cá da tela.

Desta maneira, ao adentrar na proposta dita como não intencional por John Carpenter e Debra Hill sobre o puritanismo da trama, a análise do texto expõe que Laurie Strode é a final girl correta, perseguida pelo bicho-papão, alguém que não se entrega ao sexo e consegue sobreviver até o desfecho da história. Figura mítica utilizada culturalmente para designar um demônio ou espírito que surge para atormentar ou devorar as suas vítimas, o bicho-papão personifica o caos e serve como conto disciplinar dentro do contexto em que é inserido. Assim, Michael Myers seria uma espécie de purificador, aquele que pune quem é depravado ou imoral. Armas fálicas e primitivas, um assassino confuso e indeterminado, jovens sexualmente ativos, dentre outros elementos, compõem o direcionamento da análise que se organiza com bastante coesão e coerência, tanto textualmente quanto por sua linha de associação entre teoria e tese. Saindo da análise contextual e indo para os caminhos pavimentados pela crítica semiótica, em Tensão Narrativa e Composição Visual: Uma Aplicação da Teoria de Rudolf Arnheim na Criação de Suspense em Imagens em Movimento, monografia de conclusão de curso de Lucas Tunes Barbosa, encontramos um estudo apurado do processo de construção de elementos narrativos com cenas de Halloween: A Noite do Terror, trabalho publicado em 2018, defendido como parte do processo de obtenção do título de Graduação em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense.

Complexo, pois requer observação detida do referencial teórico que envolve aspectos da Gestalt com as considerações de suspense de Noel Carroll, Alfred Hitchcock e teóricos da comunicação, o trabalho analisa o estabelecimento dos efeitos do suspense na composição cinematográfica, tendo trechos da produção em questão como destaque. O estilo do mestre do suspense é apresentado, bem como as suas considerações mais famosas, além do reconhecimento de François Truffaut acerca da genialidade de Hitchcock e suas composições narrativas. Em linhas gerais, neste trecho, o debate proposto é sobre o envolvimento do espectador no suspense, figura que se transforma em participante do filme. No que tange ao que é considerado por um dos principais teóricos do terror, Noel Carroll, encontramos como destaque o controle da informação e o envolvimento do público, elementos conquistados por meio da ordenação visual que permite o acompanhamento dos fatos, gerando as expectativas, como ocorre nas cenas analisadas do filme de 1978, um primor estético no que concerne ao universo do suspense. O vilão que aparece inicialmente sem amostrar o rosto, em enquadramentos que ampliam a tensão, juntamente com o ponto de vista em janelas, dentre outros espaços, reforçam a busca por complexidade no estabelecimento da tensão da narrativa fílmica em questão. Em linhas gerais, são escolhas estéticas que amplificam a paranoia sobre a possibilidade do assassino estar em qualquer lugar a qualquer momento.

Na dissertação de mestrado Meta-Terror: O Uso da Metalinguagem Como Recurso Narrativo no Slasher Movie, o pesquisador Marcelo Eduardo Marchi desenvolve, com muita paixão e profundidade, uma análise sobre o subgênero em questão, resgatando elementos de sua memória afetiva diante dos filmes de terror, sem deixar de traçar articulações teóricas ao longo do percurso de todo o texto, defendido em 2020 no Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som do Departamento de Artes e Comunicação, situado na Universidade Federal de São Carlos. Em sua apresentação, o autor versa sobre a premissa do slasher, tendo como foco destacar que a metalinguagem é parte desde subgênero muito antes de Pânico, com filmes que apresentavam casais sendo massacrados assistindo narrativas de terror, como ocorre em Noivas em Perigo (também Trilha de Corpos), Pânico ao Anoitecer, refilmado como O Assassino Invisível, em 2016, dentre tantos outros, delineando que a proposta do filme dentro do filme se tornou mais forte e emblemático depois de Ghostface, em 1996. Sobre Halloween: A Noite do Terror, a análise expõe o potencial da história independente, transformada em sucesso grandioso de bilheteria, ponto de partida para a caudalosa extensão do slasher nas décadas seguintes. Na reflexão, se destaca a premissa do filme de John Carpenter, uma trama sobre um psicopata solitário atacando um grupo de personagens no cenário distinto, base estrutural do subgênero desde então.

Num debate sobre origens que não se perde em essencialismos acadêmicos, a dissertação compara o filme de 1978 com Noite do Terror, de Bob Clark, produção canadense que alguns anos antes, já tinha estabelecido as bases do slasher, num passeio que também reconhece traços do estilo em Psicose e A Tortura do Medo, clássicos que se tornaram referências neste segmento, descrito noutra análise minha como integrantes do Proto-Slasher. Ademais, no caminho pavimentado em sua pesquisa, o autor traça considerações sobre o arquétipo da garota final, uma personagem com tenacidade, desenvoltura, determinação e perseverança, além de contar, nos primeiros tópicos, o processo de produção de Halloween, desde a ideia do produtor Irwin Yablans, o homem por detrás do mote inicial, desenvolvido pelo roteiro de Carpenter e Debra Hill, posteriormente. Nestes trechos, destacam-se as possíveis influências de Noite do Terror para a estrutura narrativa de Michael Myers, histórias que guardam similaridades em seus recursos dramáticos e estéticos, bem como contextuais. Diante do exposto, o slasher de 1978 é explicado como um fenômeno mercadológico que permitiu o sucesso de Sexta-Feira 13 e dos demais slashers subsequentes. Desta maneira, Halloween: A Noite Do Terror se apresenta, na dissertação, não apenas como um fenômeno cultural, mas também econômico.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais