Em 1949, a literatura policial brasileira ainda era tímida em quantidade de produção, apesar de já existir oficialmente há 29 anos, desde o lançamento de O Mistério. Com poucos exemplos do gênero produzidos no país, uma iniciativa como O Homem das Três Cicatrizes, coordenada pelo escritor, jornalista e editor João Condé, tornava-se um verdadeiro chamariz de leitores, e não à toa foi um grande sucesso. Anos mais tarde, ele repetiria a dose, com as mesmas regras, em O Mistério dos MMM (1965). Novelinha em dez pequenas partes publicadas no suplemento Letras e Artes do jornal A Manhã (Rio de Janeiro), a partir de 12 de junho de 1949, O Homem das Três Cicatrizes é um mistério escrito de forma coletiva. Cada capítulo foi concebido por um autor, que ao final de sua contribuição, indicava um colega para continuar escrevendo a obra. Não são, portanto, contos que se integram, mas partes de uma mesma obra em harmônica continuidade, com a diferença de que são escritas por pessoas diferentes.
Quem começa a brincadeira é o escritor Fernando Sabino, que nos introduz o personagem João Gabriel e o misterioso “homem das três cicatrizes” do título, apresentado de maneira um tanto sexy, com a toalha no ombro, saindo de uma ducha. É um primeiro capítulo até bem humorado, mostrando a personalidade indecisa de João Gabriel (a ponto de o leitor ficar irritado com o personagem) e seu encontro inesperado, mas bastante marcante, com esse homem com três pontinhos alinhados perto da espinha. A escrita de Sabino começa leve, com uma apresentação de problemática que nos faz rir, mas que rapidamente chega a um patamar amedrontador, especialmente porque João reconhece o misterioso homem da casa de banhos e passa mal ao vê-lo. Há uma dubiedade gostosa ao fim desse primeiro capítulo, deixando-nos com algumas perguntas sobre os personagens e também sobre o histórico que os envolve.
A trama é continuada por Herberto Salles, que tem uma escrita mais séria, explorando maiores detalhes dramáticos. Neste segundo capítulo, aprendemos que o nome do homem misterioso é Fronza. Existe um episódio de agressão de João a esse indivíduo (isso Sabino já tinha aludido, falando do “garfo na mão“) e uma jovem chamada Ludmilla que “deveria estar morta, mas não está“. A entrada em cena de uma mulher chamada Ester também encuca o leitor, e Salles, ao tornar o drama mais intenso, mais informativo e mais sério, coloca também uma atmosfera de aparente vingança ou perseguição em cena, com um agravante: João estava internado numa Casa Verde, ou seja, um sanatório. No terceiro capítulo, Adonias Filho dá uma modificada geral na narrativa, fazendo com que a briga entre os dois homens se intensifique ao máximo, em um estilo que preza pela exploração emocional dos personagens e a descrição de um ato muito marcante. Ao final desta parte, eu fiquei de boca aberta com uma sequência muito bem escrita de uma grande violência.
O capítulo 4, escrito por Josué Montello, finaliza o arco de João Gabriel após o assassinato de Fronza. É um início de capítulo meio óbvio, considerando o que veio antes, e o autor não se destaca muito ao firmar os primeiros passos do assassino depois do terrível ato. Todavia, o desenvolvimento do capítulo e a sua finalização trazem uma ótima profundidade para João, que tem problemas psicológicos, já esteve internado na Casa Verde e tem essa fixação ciumenta por Ludmilla, personagem feminina ainda misteriosa na história. O bacana é que o autor cria mais um caminho possível para o suspense, deixando um jornal cuidadosamente escolhido numa notícia que perturba João ainda mais. É uma pena que o capítulo 5, escrito por Dinah Silveira de Queiroz, desapareceu (ou pelo menos não consta entre os resgates históricos, até o momento da minha pesquisa na Hemeroteca Digital do Suplemento de Letras, onde li o conto em julho de 2022). Era um dos capítulos que eu estava mais curioso para ler, por sinal.
Marques Rebelo insere a polícia na história, e considerando os eventos desta parte mais o “resumo dos capítulos anteriores“, no bloco seguinte, tive a sensação de que a parte escrita por Dinah Silveira de Queiroz foi completamente ignorada, porque não parece que está faltando um pedaço da história não. Será que foi isso mesmo? Bom, com a entrada da polícia, temos o início de uma investigação formal, mas o mistério continua crescendo, porque João não sabe onde deixou o corpo, e aqui descobrimos que o que ele viu no jornal deixado em sua casa não foi uma notícia da morte do tal “professor Fronza”, mas sim o relato de que ele estava recebendo cartas com ameaças de morte. Já no bloco seguinte, Lêdo Ivo faz com que Fronza assuma a posição memística de “morreu, mas passa bem“, porque o repórter Batista liga para o sanatório onde o homem das cicatrizes atuava e é atendido justamente por quem procurava. Uma outra virada é adicionada à narrativa aqui, com Ludmilla aparecendo e dizendo que… olhem só… o professor Fronza fora assassinado em sua casa e ela prendera o assassino no banheiro.
No capítulo 8, José Condé (irmão do organizador dessa experiência) não cria nada de chamativo, apenas dá continuidade aos eventos que estavam ocorrendo, adicionando um ponto que cerca a personagem que faltava (Ester) e aparentemente começando a arrumar a casa para a resolução do caso. No capítulo 9, o escritor Rosário Fusco apresenta uma cena bastante grotesca, na casa de Ester. Me lembrou bastante o melhor capítulo da obra (o terceiro, de Adonias Filho), porque apresenta três corpos numa cena de crime bastante medonha e interessante. Achei que o escritor começaria a encaminhar o enredo para a conclusão, mas não é isso que ele faz. Ao contrário, a trama se torna ainda mais misteriosa com a descoberta de mais três corpos, e é com alta expectativa que entramos no 10º e último capítulo de O Homem das Três Cicatrizes, o decepcionante encerramento escrito por Newton Freitas.
É consideravelmente “legalzinho” o fato de termos uma finalização “fora da caixa” e, ainda por cima, metalinguística. Mas o problema é o contexto em que esse final está inserido. Não houve preparação alguma para esse tipo de finalização; o penúltimo capítulo criou ainda mais elementos misteriosos para se resolverem e, totalmente ancorado em um Deus Ex Machina diferentão, resolveu o caso de forma extra-narrativa. O capítulo traz, inclusive, momentos cômicos e com interessantes alfinetadas, mas que não combinam com o tom que a obra tinha até aquele momento. Foi uma mudança brusca para algo que deveria ter sido melhor preparado ou tivesse mais capítulos dedicados à sua construção. A iniciativa coletiva em O Homem das Três Cicatrizes é ótima. O time de escritores convidados ressoava bastante para a literatura brasileira dos anos 1940 e, até o encerramento, que não deixa de ter sua graça, trouxe a interessante construção de um mistério cheio de possibilidades, mas que só cresceu em preparação, não ganhando a resolução que deveria e merecia.
O Homem das Três Cicatrizes (Brasil, 1949)
Publicação original: Suplemento Letras e Artes do jornal A Manhã (Rio de Janeiro)
Autores: Fernando Sabino, Herberto Salles, Adonias Filho, Josué Montello, Dinah Silveira de Queiroz, Marques Rebelo, Lêdo Ivo, José Condé, Rosário Fusco, Newton Freitas
10 páginas