I’m sensitive, I feel everything, I feel everybody
One man standin’ on two words, heal everybody
Transformation, then reciprocation, karma must return
Heal myself, secrets that I hide, buried in these words
Death threats, ego must die, but I let it purge
Existe uma ironia na capa de Mr. Morale & the Big Steppers, quinto álbum de Kendrick Lamar. O rapper está usando uma coroa de espinhos, sugerindo o pedestal que muitos fãs colocam o artista. Ele, então, passa o restante do álbum demonstrando como é imperfeito, vulnerável, hipócrita e, bem, humano. É através dessa abordagem pessoal que os trabalhos de Lamar são lapidados em diamantes, pois suas críticas políticas e comentários sociais não partem de uma proclamação da “verdade” em preto e branco, e sim de um ponto de vista falho e íntimo. O músico se tornou um observador tão poderoso da sociedade porque ele sempre olha para si mesmo antes, para seus atos, sua família e suas experiências.
Sua discografia sempre ressoou comigo por causa dessas características autênticas e sinceras, pois Lamar critica o coletivo enquanto estuda o próprio caráter. Existe um poder emocional e empático nisso, de rasgar suas inseguranças e partilhar sua alma com o público sem qualquer tipo de defesa. E Mr. Morale & the Big Steppers é, talvez, o álbum mais particular de Kendrick, mergulhando em muitas histórias traumáticas, seio familiar, saúde mental e dificuldades criativas. É, aliás, um trabalho praticamente autobiográfico, com Lamar expurgando seus demônios e tratando suas feridas.
As sessões de terapia começam com United Grief, uma canção que detalha algumas peculiaridades e histórias de Kendrick, abordando seu lado materialista, não muito diferente dos rappers que ele tanto já criticou – e também não muito diferente de nós, seus ouvintes. A melodia aqui tem um ritmo jazzístico e frenético, principalmente na bateria que parece emular rápidas batidas de coração, mas, curiosamente, a sensação sonora é melancólica, especialmente com a harmonia do piano, criando representações diretas da aflição que só a ansiedade consegue criar.
Grande parte do álbum segue a mesma abordagem de uma grande terapia musical. As composições, sejam instrumentalmente, sejam liricamente, não são muito agradáveis num sentido confortante de ouvir, e são muito menos voltadas para o pop e os ritmos limpos de seu último álbum DAMN.. É seu trabalho mais sonoramente desconfortante e angustiante, com a técnica staccato de piano espalhada nas canções, junto de baterias maníacas e inquietas, além dos diversos samples vocais distorcidos. Vemos muito disso em N95, uma canção que até tem alguns ganchos de humor que Lamar gosta (“ugh, you ugly as fuck”), mas que contém uma letra densa, melodia cheia de justaposições e muitas críticas a cultura de cancelamento, e também em Worldwide Steppers, uma canção totalmente sem filtros que olha para o passado de Lamar, sua objetificação de mulheres e a rapidez com a qual ele saiu do gueto quando ganhou dinheiro.
Die Hard muda um pouco as coisas. É a música mais dançante e charmosa do álbum, trazendo uma melodia que evoca a sensualidade do verão, participações de artistas com vocais suaves e um tilintar de chocalhos ao fundo que mantém a harmonia delicadamente coesa. Os versos de Lamar são até esperançosos, mas ainda é possível sentir uma tristeza vaga sobre remorsos e os erros que nos consomem, junto da nossa necessidade de encontrar perdão.
A sessão de terapia aberta retorna com força em Father Time, um olhar cru para a masculinidade tóxica com a qual tantos de nós crescemos, sem espaço para vulnerabilidade e escondendo emoções por trás da violência. Melodicamente, a canção é um exemplo da produção meticulosa do álbum, misturando instrumentais mais orquestrais com as batidas trap – sem falar de vibratos absurdos de Sampha -, enquanto tematicamente puxa um dos principais temas de Mr. Morale & the Big Steppers: trauma geracional.
Vemos o tema abordado com genialidade em Auntie Diaries e a história transexual do tio de Lamar, com o artista analisando linguagem, comportamentos infantis gerados por padrões sociais e, claro, representação, mas sempre nessa perspectiva de falha e dos seus próprios preconceitos, com uma melodia em crescendo à medida que o eu lírico adquire compaixão. Mother I Sober é ainda mais comovente, com um flow machucado de Lamar contando a história de abuso de sua mãe e as diferentes maneiras que a situação traumática lhe afetou – é uma música sobre vulnerabilidade em tantos níveis, sobre culpa, misoginia e impotência, muito bem acompanhada pelo piano e a participação de Beth Gibson que traz uma necessária dimensão feminina à melodia.
O realismo e a pessoalidade do álbum atingem um novo nível de originalidade com a criativa We Cry Together, uma canção sobre um relacionamento tóxico com a briga de um casal, interpretados por Lamar e Taylour Paige. O rapper explora ao máximo sua habilidade teatral e com narrativas musicais (inclusive com sonoplastia) para criar o cenário que emula horrores reais, e chega a ser impressionante como ele consegue tornar a discussão rítmica em sua agressividade.
Mr. Morale & the Big Steppers retorna à desconstrução de messianismo em Savior e Mirror, duas canções que falam sobre o homem, o marido, e o ser humano falho, bem longe da idealização que às vezes criamos de artistas – curiosamente, são músicas com algumas das produções mais suaves e orquestrais do álbum, junto do rap melódico de Count Me Out. No fim, Kendrick Lamar ensina tanto sobre sociedade, racismo estrutural e a condição humana por ser, acima de tudo, autocrítico. Ele não quer ser um modelo a seguir, mas caramba, como eu sinto empatia pelo cara.
Aumenta!: Todas!!!
Diminui!: —
Minha canção favorita do álbum: Father Time
Mr. Morale & the Big Steppers
Artista: Kendrick Lamar
País: Estados Unidos
Lançamento: 13 de maio de 2022
Gravadora: PGLang, TDE, Aftermath, Interscope
Estilo: Hip-Hop