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Crítica | Mãe Solteira

Quando a maternidade se transforma num tema trágico.

por Fernando JG
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Desesperançosa, Sally Kelton (Sally Forrest) aparece subindo uma ladeira íngreme e está prestes a furtar um bebê que está num carrinho ao lado de fora de uma loja. Através da retrospecção, o filme tenta explicar quem é esta moça e as razões por trás da sua atitude. Apaixonada por um pianista e envolvida num romance cretino junto dele, a protagonista é acometida por uma gravidez indesejada e abandonada pelo sujeito antes mesmo dele saber de sua gestação. Sem saber o que fazer e com medo do estigma que certamente recairá sobre a sua figura, a jovem busca maneiras de se livrar da criança, rejeitando uma maternidade infausta que em breve será permeada por julgamentos e apontamentos destrutivos. 

Quando a primeira cena do filme se abre, a protagonista de Sally Forrest já está com uma cara impagável de choro, caminhando rumo a uma atitude de desespero: ela furta uma criança de um carrinho que está parado na rua sob a alegação de que é sua, mas devolve em seguida. Claro, não sabemos o porquê disso visto que a cineasta desloca, a partir de um moderníssimo arranjo de montagem, o trecho final para o começo da película numa continuidade que em nada soa anacrônico ou desajustado o trecho, de modo que Ida Lupino já dá sinais de que vai trabalhar sob o risco e assume toda a responsabilidade de uma trama que se inicia sob o signo da coragem, trabalhando um tema que é, além de suscetível, um tabu. Temos uma mulher elaborando de modo subversivo à época o tema da maternidade, sobretudo de uma maternidade que não é bem-vinda. Talvez esteja aí uma referência direta que tenha permitido Bergman inventar suas cenas imperfeitas de recusa à maternidade em Monika e o Desejo.

Ainda que Lupino tivesse co-escrito e produzido o longa-metragem, ela não era a diretora, mas Elmer Clifton, que subitamente passa mal durante as gravações e precisa se ausentar. Ao tomar a frente das rodagens – aliás, esta seria sua estreia inesperada por trás das câmeras -, a cineasta parece dar uma enorme vazão aos sentimentos indefinidos de sua personagem principal, trabalhando nela como se fosse uma espécie de heroína trágica, ingênua e sentimentalíssima, com um estilo intimista na condução do enredo e um roteiro completo, que busca sempre abrir e concluir as frestas propostas. No ofício de realizadora, em respeito a Elmer, ela recusa os créditos como diretora do filme. 

Gosto que a cineasta opta por utilizar da descoberta da gravidez como um plot-twist de peso na construção da sua ideia de filme, introduzindo psicologia e subjetividade no curso do enredo a partir daí, nos fazendo sentir apreensão pelo acontecimento que recai sobre a heroína. Contudo, lhe falta criatividade para inventar a motivação que a leva sair de casa e fugir. Bom, veja só: não se sabe ao certo o momento em que Elmer Clifton deixou as filmagens, mas se posso levantar uma hipótese que parece fazer sentido dentro coesão fílmica, me soa estranho que haja uma cena de transição muito mas muito mal executada ali nos primeiros vinte minutos de filme, assemelhando a algo que ficou no meio do caminho e precisou de um reparo “às pressas” para que o filme pudesse continuar. 

Logo, para fazer com que a personagem tenha alguma continuação no enredo, fazem-na sair de casa após uma briga sem motivação nenhuma contra seus pais, que nem conseguem responder à abrupta investida, tampouco entender o que ocorre, forjando um motivo para lá de inverossímil dentro de qualquer possibilidade, seja real ou ficcional – algo feito só para oferecer uma razão “plausível” para sua saída de casa e consequentemente para a continuação dramática. Temos um corte brusco e recebemos Sally Kelton já num ônibus de viagem, no que parece uma outra direção. Com hipótese ou não, fato é que esta cena de transição é absolutamente múltipla em falhas de coesão, continuidade e motivação. Uma das poucas críticas que tenho ao filme – junto da exaustíssima cena final que poderia ser cortada pela metade sem prejuízo algum à finalidade – mas que me parece um erro bem relevante dentro do todo. 

No entanto, as imagens conseguem transmitir muito bem os sentimentos que movem a película, sobretudo o clima de impotência e medo diante de um cenário social conservador, e surpreende o fato de que a sua protagonista atua de modo destemido e corajoso, passando por cima de problemas a princípio paralisantes e dizendo com muita clareza o que deseja e o que não deseja, com firmeza marcante. Isto é, num momento em que a ideia de mulher está profundamente atrelada à subordinação masculina e ser solteira é sinônimo de que “algo está errado”, ser mãe solteira, fruto de uma transa fora do casamento, ou ainda uma gravidez indesejada, não se torna só uma questão relevante para a discussão temática, mas uma tópica trágica por excelência. Por isso o constante rosto de sofrimento de Sally Kelton quando a câmera a enfoca. A cineasta me parece bem à vontade neste terreno e é muito pioneira e vanguardista ao dar voz de decisão para a sua heroína que enreda um drama-tabu neste excelente filme sobre a condição feminina na década de 50. 

Atual e com um nível de percepção da realidade excelente, o polêmico Mãe Solteira de Ida Lupino marca uma estreia magnífica na direção. Recebemos um roteiro completo, uma temática relevante transformada num enredo de alta qualidade que só tende a crescer com a passagem dos minutos, um ritmo que acompanha bem a trajetória da protagonista e um plot que surpreende pela agudeza no trato de um tema tão cotidiano e corriqueiro.

Mãe Solteira (Not Wanted, EUA, 1949)
Direção: Elmer Clifton, Ida Lupino
Roteiro: Ida Lupino, Paul Jarrico
Elenco: Sally Forrest, Keefe Brasselle, Leo Penn, Dorothy Adams, Wheaton Chambers, Ruthelma Stevens, Ruth Clifford, Gregg Barton, Charles Seel
Duração: 90 min. 

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