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Crítica | Octopus (2021)

Quando tudo está no extracampo, nada está no campo.

por Michel Gutwilen
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Partir de um acontecimento do mundo real, externo ao Cinema, para transformá-lo em experiência cinematográfica, é um movimento natural e um dos maiores impulsos que movem cineastas. Quantas tragédias que envolvem perda de vidas já não foram abordadas, seja pelo documentário ou pela ficção? E aqui quando se fala em uma tragédia, não quer dizer só acontecimento em si, mas também o seu “pré” (caso de Elefante, de Gus Vant Sant) e o seu “pós”. Em 2020, já durante a pandemia, imagens chocantes, capturadas por câmeras de celular, das explosões no porto de Beirute, que deixaram mais de 100 mortos, rodaram o mundo. Se o acontecimento em si já foi exaurido no imaginário popular e repetido à exaustão na época, Octopus parece não querer mais lidar com essas imagens, o  que importa aqui é o pós. Como ficou a região? Quais as consequências para as pessoas que vivenciaram aquilo?

Exibido logo após o filme Verão (do russo Vadim Kostrov), a curadoria do Olhar de Cinema parece ter pensado em montar uma sessão dupla orgânica — para quem comprou os dois filmes, claro — sobre silêncios. No caso do cineasta libanês Karim Kassem, importa que sejam as imagens as responsáveis por tentar comunicar a dor e o trauma, ocasionalmente interrompidos por ruídos fantasmagóricos ligados à tragédia, como o som da buzina de navios, de relógios ou de sirenes. Desde o início, Octopus adota essa ideia de incomunicabilidade, de um filme extremamente fechado, se desdobrando em dois objetos de interesse: a arquitetura e os rostos de uma cidade. 

São muitos planos de rostos em close-up, ou de pessoas dentro de seus apartamentos (alguns destruídos e outros não), em que Kassem busca criar uma espécie de mapeamento populacional daquela região. Os olhares se voltam para o extracampo (toda a tragédia é lidada desta forma), o plano permanece se dilatando enquanto o espectador é convidado a tirar algo daquele vazio silencioso, enquanto aquelas pessoas estão dispostas rigorosamente no plano, de decupagem formalista, e que faz alguns movimentos de travelling complexos, em que faz o movimento de sair do rosto de uma pessoa para mostrar a destruição ao seu redor.

Há dois incômodos principais com toda a abordagem de Kassem. O primeiro deles é o do hermetismo. É extremamente difícil de se comunicar enquanto espectador com aqueles corpos e sentir alguma empatia (capacidade de se botar no lugar do outro, ou seja, sentir sua dor) porque o próprio filme é tão fechado que não permite aberturas para entrar nele, quase que impermeável. Todos os sentimentos parecem se dispersar tanto para o extraplano, que não resta nada neles, a não ser as composições e movimentos de câmera. Isso leva exatamente para a outra ressalva com o filme, que eu não iria em uma opinião radical de dizer que é composto inteiramente de “travellings de Kapò”, mas há a busca por uma estetização do plano e da dor que geram um profundo incômodo. Não em relação ao acontecimento da explosão, mas da própria percepção de que o diretor parece estar mais interessado em “fazer Cinema” antes de lidar com as pessoas através do Cinema — um bom exemplo deste mau gosto é aquela cena dos destroços de um prédio caindo em câmera lenta. 

Ainda em diálogo com tudo que foi dito, há um movimento desumanizador ao longo de Octopus, que se torna extremamente arquitetural, em um filme de espaços, de tentar trazer algum sentimento do vazio de prédios destruídos, corredores abandonados e outros tipos de fantasmagorias do espaço. Partindo de uma especulação, mas esta ideia pareceria funcionar muito mais se estivesse inserida dentro de uma lógica dialética dentro do filme, de que as suas próprias imagens fornecessem ao espectador o que poderia estar naquelas lacunas. Ao invés disso, é preciso haver um esforço espectatorial em tentar empatizar através do seu conhecimento da tragédia pelo mundo real.

Por outro lado, contextualizando o filme dentro de uma exibição no Olhar de Cinema 2022, Octopus se relaciona com diversos outros integrantes da seleção, todos ligados a uma ideia de imobilidade, de protagonistas (neste caso, seria uma população) presos a um limbo, travados de seguir em frente por terem amarras ao passado. Ainda que me incomode pelos motivos já apresentados, curiosamente foi um alívio vê-lo após tantos outros, porque talvez esse seja um dos selecionados do festival que mais faz o movimento em direção ao futuro, que permite enxergar uma ideia de que é possível seguir em frente (ainda que com dificuldades ou casuais passos para trás), uma luz no fim do túnel. Não se trata somente da perda, do luto e do trauma, que obviamente existem, mas também de uma região que precisa continuar, que está se reconstruindo e, na medida do possível, seguindo a vida em frente.

Octopus (2021) — Líbano, Catar, Arábia Saudita
Direção: Karim Kassem
Roteiro: Karim Kassem
Elenco: Fouad Mahouly
Duração: 64 mins

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