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Crítica | Tokyo Vice – 1ª Temporada

O submundo de Tóquio desnudado com muito estilo.

por Ritter Fan
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Antes de mais nada, se sua preocupação é que Tokyo Vice é uma daquelas séries que posiciona um americano branco como salvador da pátria em uma país estrangeiro, pode ficar tranquilo, pois não tem nada disso aqui. Claro, há um americano branco tornando-se o primeiro jornalista não japonês do mais importante jornal nipônico do final dos anos 90 e sim, ele deflagra uma investigação sobre a Yakuza, mas a série, capitaneada por J.T. Rogers com base em livro jornalístico autobiográfico de Jake Adelstein, que conta suas experiências no arquipélago do Oceano Pacífico, não segue o caminho mais fácil e simples de agradar o público americano.

Além disso, diferente do que se poderia esperar, e bem na contramão de obras americanas que se passam em países estrangeiros, especialmente os orientais, há extenso uso do japonês. Não só o protagonista americano do Missouri vivido por Ansel Elgort (o Tony do novo Amor, Sublime Amor) fala a língua com constância, mostrando um impressionante esforço do ator em pelo menos capturar os sons dos diálogos que precisa dizer – e não é uma tarefa fácil, garanto para vocês -, mesmo que talvez para alguém que fale japonês fluente, falhas sejam detectáveis (não é meu caso, então o “fingimento” me pareceu excelente e mais do que convincente), como os demais personagens ocidentais também falam japonês e, claro, os personagens orientais quase que exclusivamente falem a língua do país. Sem dúvida que o inglês também é falado, mas há uma lógica para o uso da outra língua que, no final das contas, ganha um caráter secundário.

Afastados esses pontos, a primeira temporada de Tokyo Vice consegue ser um surpreendente mergulho no submundo nipônico que foge do lugar-comum que estamos acostumados a ver por aí em obras ocidentais que olham para o oriente. Admito que a estrutura narrativa principal, que lida com a Yakuza, mais precisamente um clã de fora de Tóquio que passa a invadir o território da megalópole comandada por outro clã, criando constantes conflitos, não é uma grande novidade em filmes e séries de gângsteres, mas o que realmente importa é a granulação da história, ou seja, o seu detalhamento que faz o espectador viaje por caminhos razoavelmente incomuns em obras do gênero.

Há uma exploração da curiosa e bem particular da vida noturna japonesa, conhecida como mizu-shōbai, especialmente a mais famosa delas, em Kabuki-chō, no movimentado distrito de Shinjuku, com seus bares, cabarés e boates servidos por anfitriãs – não prostitutas, não escort girls, que fique bem claro – de todas as nacionalidades, a mais relevante delas para a série sendo Samantha Porter (Rachel Keller, a Syd de Legion). Além disso, há uma visão minuciosa do jornalismo cartesiano japonês da época em que a série se passa, 1999, em que o jornalista ficava (não sei se ainda é assim) quase que exclusivamente adstrito a relatar fatos conforme eles são reportados pelas autoridades, sem opiniões e sem todo o lado investigativo, algo que frustra Jake tremendamente, apesar de sua aproximação cada vez maior com sua inicialmente rígida chefe direta Emi Maruyama (Rinko Kikuchi, a Mako Mori de Círculo de Fogo), que o leva a um caminho mais de parceria e cumplicidade.

E, claro, como não poderia deixar de ser, há a abordagem da polícia japonesa, também rígida em sua forma de trabalhar os casos e com enorme preocupação de passar uma imagem da capital japonesa que não exatamente corresponde à realidade dos fatos. É na relação de Jake primeiro com o mais relaxado – no estilo ocidental, digamos assim – detetive Jin Miyamoto (Hideaki Itō) e, depois e principalmente, com o veterano Hiroto Katagiri (o grande Ken Watanabe que, claro, dispensa apresentações), que a história central realmente floresce e passamos a conhecer as engrenagens podres de uma cidade impressionante. É a partir de um aparente suicídio que Jake começa sua própria investigação, com os roteiros, porém, inteligentemente tirando o controle das mãos do ocidental e, de certa forma, entregando-o para os orientais, especialmente, claro, Katagiri.

O mesmo pode ser dito da própria Yakuza. Jake estabelece uma relação de amizade hesitante com um membro ainda iniciante na organização, Sato (Show Kasamatsu), criando um triângulo semi-amoroso com Samantha, o que permite que o espectador tenha também um olhar privilegiado para dentro da organização criminosa, seja a facção que comanda Tóquio, capitaneada por um oyabun já mais idoso e desacreditado, seja a facção entrante, comandada, na prática, pelo violento e ameaçador Shinzo Tozawa (Ayumi Tanida) que, porém, esconde uma doença debilitante do conhecimento geral. Não seria injusto nem errado dizer que Jake é apenas o veículo para permitir que nós, ocidentais, tenhamos um assento cativo para observar não só as engrenagens internas da Yakuza moderna, como também das demais organizações que mencionei acima.

E enquadrar Ansel Elgort como um guia é, talvez, a melhor maneira de encarar e aceitar o ator no protagonismo. Mesmo considerando que seu físico esguio, de cabelo lambido, cria um interessante contraste às suas contrapartidas japonesas, Elgort não é bom o suficiente em seu trabalho – nem sei se eu diria que ele é “bom” – para carregar uma série dessa nas costas. A decisão estrutural de J.T. Rogers é a melhor possível, transformando-o em um “facilitador” muito mais do que um personagem completamente desenvolvido, deixando que a história flua graças aos demais membros do elenco, especialmente Watanabe, Kikuchi e Keller, mesmo que haja tentativas de se criar estofo narrativo ao personagem com a família que ele deixou no Missouri.

A progressão narrativa é, até mais ou menos o segundo terço do sexto e antepenúltimo episódio da temporada, muito interessante, com a assinatura diretorial de Michael Mann no episódio de abertura marcando a atmosfera neon-noir da obra que os demais diretores continuam sem solução de continuidade. Alguns personagens, notadamente os dois amigos que Jake faz no jornal, são esquecidos em determinada altura da história, mas, quando o penúltimo capítulo começa, a sensação de que há assuntos demais sendo empurrados artificialmente para frente, evitando resoluções, passa a avolumar-se, transformando a ausência desses amigos em um detalhe insignificante. Tenho consciência de que é uma primeira temporada apenas, mas o problema é que há uma elipse temporal no final do sexto episódio que “transforma” Jake e muda o status quo da obra, ao mesmo tempo em que pontas narrativas começam a ganhar desmembramentos, como é o caso do drama de Polina (Ella Rumpf), anfitriã do mesmo bar em que Samantha trabalha, e de um jovem recruta da Yakuza que fica debaixo da asa de Sato.

Os elementos extras, portanto, começam a tirar tempo para que o verdadeiro filé mignon (ou seria sushi?) da série ganhe desenvolvimento efetivo, que caminhe para fechamentos de arcos, resultando em uma temporada que acaba completamente escancarada, com pouquíssimos efetivos fins. E isso é ainda mais estranho quando lembrarmos que os primeiro minutos do primeiro episódio mostram Jake e Hiroto trabalhando juntos no que parece ser uma operação policial perigosa dois anos depois da ação que vemos desenrolar ao longo da temporada. Não há retorno para esse momento futuro depois que o vemos nessa única vez, o que faz a proposta narrativa de enquadramento se perder.

A impressão que ficou é que Tokyo Vice era uma minissérie que ganhou, no meio da produção, o status de série com algumas temporadas, criando um exagero de pontas soltas que desanimam o espectador, mesmo considerando o quanto o trabalho de Rogers é capaz de nos atrair para esse submundo repleto de nuanças de uma das maiores cidades do mundo. Fica a curiosidade de ver como é que tudo será resolvido, mas fica também o receio de que o showrunner sucumba às demandas de uma produção protraída demais no tempo, mesmo que ela seja repleta de bem-vindos “anti-tropos” narrativos quando se fala de uma produção americana sobre algum país reputado como “exótico”.

Tokyo Vice – 1ª Temporada (EUA, de 07 a 28 de abril de 2022)
Criação: J.T. Rogers (baseado em livro de Jake Adelstein)
Direção: Michael Mann, Josef Kubota Wladyka, Hikari, Alan Poul
Roteiro: J.T. Rogers, Karl Taro Greenfeld, Arthur Phillips, Naomi Iizuka, Adam Stein, Jessica Brickman, Brad Caleb Kane
Elenco: Ansel Elgort, Ken Watanabe, Rachel Keller, Hideaki Itō, Show Kasamatsu, Ella Rumpf, Rinko Kikuchi, Tomohisa Yamashita, Kōsuke Toyohara, Takaki Uda, Kosuke Tanaka, Masato Hagiwara, Shun Sugata, Eugene Nomura, Koshi Uehara, Masayoshi Haneda, Noémie Nakai, Ayumi Tanida, Kazuya Tanabe, Jundai Yamada
Duração: 471 min. (oito episódios)

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