Com o subtítulo “Uma História Verdadeira de Crime, Policiais e Corrupção em uma Cidade Americana“, o ex-repórter do Baltimore Sun Justin Fenton escreveu um livro jornalístico que descortina cada detalhe da corrosão sistêmica da polícia de Baltimore, conhecida como uma das cidades mais violentas dos Estados Unidos. Seu principal foco é no grupo de policiais elite à paisana batizado de Gun Trace Task Force (Força-Tarefa de Rastreamento de Armas), ou GTTF, especializado, como seu nome indica, em reduzir a posse ilegal de armas por cidadãos em um país em que comprar armas é tão fácil quanto comprar uma pizza.
Liderada pelo Sargento Wayne Jenkins no momento temporal mais importante da narrativa, a Força-Tarefa foi acusada não “apenas” de violência policial ou de casos isolados de variados exemplos de má conduta policial por seus membros, mas sim de algo muito mais amplo, relacionado com furtos, roubos e até mesmo tráfico de drogas, tudo debaixo das barbas de superiores, incluindo sucessivos chefes de polícia e prefeitos. Fenton narra sua história tomando o cuidado de trabalhar sob o contexto mais amplo da violência policial nos EUA, especialmente contra afro-americanos, muitos deles assassinados por policiais em situações absurdas, mas deixando claro que os policiais que são alvo de sua minuciosa análise não têm relação com esses casos notórios, ainda que façam parte de exatamente o mesmo sistema que os gerou.
O autor não esconde a natureza jornalística de sua obra e não tenta romancear sua história e nem trabalhar linhas narrativas que não tenham conexão direta com os eventos que relata. Com isso, o leitor não deve esperar qualquer semblante de “construção” e/ou “desenvolvimento” de personagens ao longo da obra, pois não é de sua natureza ter algo assim. Aliás, Jenkins, em tese o alvo principal da investigação, é como uma “lenda” ou uma “sombra” nos relatos de Fenton, já que o jornalista raramente aborda diretamente o policial, preferindo estabelecer sua personalidade e seus atos por intermédio de uma série de provas que o circunavegam, o que por vezes causa um pouco de estranheza na leitura.
A investigação em si, que começou quase que sem querer, por intermédio de uma dupla policial de fora de Baltimore que achou um segundo aparelho de GPS em um carro de traficante que investigavam, e, lentamente, chegou até o FBI e todo o seu aparato federal, é fascinante e assustadora. No entanto, Fenton não se preocupa em esmiuçar os detalhes da hierarquia política e policial dos EUA para os leitores, partindo da premissa que eles já são conhecidos do leitor, o que provavelmente não é verdade pelo menos para quem não for americano ou morar nos EUA. Mas, se for possível ultrapassar esse aspecto – e assistir The Wire ajuda muito, especialmente porque a série se passa na mesma cidade – e o leitor conseguir se acostumar com a objetividade jornalística do autor, que evita firulas “poéticas” ou qualquer tentativa de embelezamento textual, A Cidade É Nossa (como o livro não foi publicado ainda por aqui, usei o título em português da minissérie da HBO baseada nele) é, sem dúvida, alguma, uma leitura estarrecedora.
No entanto, esse “estarrecedora” deve ser relativizado para leitores brasileiros (e de alguns outros vários países, lógico), pois a corrupção sistêmica dos órgãos públicos no Brasil, do mais básico até a Presidência da República (e não falo apenas da administração da época de publicação do presente artigo, evidentemente), passando obviamente pela polícia, é gigantesca e profunda, com escândalos tão impressionantes que, no agregado, fazem o relato de Fenton, por vezes, parecerem brincadeira de criança. Por outro lado, o autor vai em detalhes tão específicos sobre os atos desse grupo de policiais que não é comum vê-los em artigos de jornal, dando a entender que, por trás de gigantescos escândalos notórios, há uma capilaridade de diversos outros assuntos que acabam sendo esquecidos ou jamais investigados ou, pior ainda, não sendo “dignos” de aparecerem em publicações. Fenton, ainda bem, trata do macro com a mesma atenção que dá ao micro, ou seja, aborda a brutalidade dos policiais com revistas focadas em um grupo bem específico de pessoas “suspeitas” da mesma forma que lida com os relatórios fraudulentos de horas extras que os policiais preenchem.
Em termos estilísticos, apesar da forma direta com que Fenton escreve, ele comete alguns pecados, sendo o maior deles a maneira como ele salta no tempo, criando uma narrativa não-linear para expandir determinadas situações que ele descreve com o que no audiovisual seriam flashbacks, mas que nem sempre funcionam aqui dada a natureza eminentemente cronológico de seu trabalho. Da mesma maneira, apesar de serem obviamente necessários para o relato, o livro tem nomes demais e, mesmo que haja um esforço para identificar os principais logo no início da obra, o texto em si não dedica muitas palavras a explicar quem exatamente são as pessoas que vemos desfilar por nossa frente, gerando a necessidade razoavelmente constante de se voltar algumas páginas – por vezes muitas páginas – para relembrar quem é quem.
A Cidade É Nossa é um cuidadoso e detalhado trabalho jornalístico que desbarata uma quadrilha de bandidos que se dizem policiais e, por vias transversas, desnuda um sistema falido que vai muito além da polícia de Baltimore, quiçá muito além das fronteiras dos EUA. Não é uma leitura fácil tanto pela matéria que trata quanto pela complexidade do assunto em si e dos pulos temporais que Fenton insiste em dar, mas, se o leitor souber ultrapassar os obstáculos, encontrará recompensas que farão valer o esforço.
A Cidade É Nossa (We Own This City: A True Story of Crime, Cops and Corruption in an American City, – EUA, 2021)
Autor: Justin Fenton
Editora original: Random House
Data original de publicação: 23 de fevereiro de 2021
Páginas: 352