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Crítica | “Auto do Céu” – Julhin de Tia Lica

Ressuscitando o céu com ares do manguebeat.

por Davi Lima
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Auto do Céu

Ah, o céu!
Quão lindo é o… está morto.
Enterraram o céu.

A fusão entre o Primeiro Ato e o Segundo Ato deste álbum permite relacionar o voo de uma Ribaçã, uma pomba da Caatinga, um ser natural, com a aventura pela vida cósmica e astronômica da galáxia Andrômeda e constelações variadas. As perfurações temáticas que Julhin de Tia Lica consegue passeando pela mesma cultura nordestina do forró, do manguebeat e do xote pertence a uma naturalidade musical que nos faz crer que o “país” Nordeste transcende. Mas esse transcender não é aleatório, mesmo que seja amplo, num primeiro momento.

O teatro ditado pelo artista chega ao Terceiro Ato utilizando a imagem de um Chico Science onírico para complementar a esperança da pomba resistente da Caatinga e chegar ao firmamento como definição da completude do pensamento. Desse jeito, o álbum volta-se para sua esperança temática. Do sonho à realidade de se querer um céu vivo, que foi enterrado. Da reza Incelença pro Céu Sem Estrelas ao canto naturalista Ribassan com a voz solene de Ana Heloysa, se desenha o campo de texto que o Auto está buscando. Não é um céu qualquer. Barbaridade concretiza com o xote o balanço dançante que Midian Nascimento vocaliza para o ouvinte o céu que o paraquedista sobe e desce, e o céu misterioso que o eu lírico considera um lar que já tocou e para onde quer voltar, para sempre.

O que era um universo naturalista cósmico nos primeiros atos do disco se faz espiritual e realista ao mesmo tempo. Os objetos do pássaro e do cosmos permanecem, porém se ressignificam ao longo da transformação discursiva que a musicalização entre atos proporciona. Soa mágico, para não se dizer sobrenatural. No entanto, ao espiritualizar esse bendito céu do seu conto medieval da praça, Julhin faz outra cisão. Inclui-se o manguebeat com um senso de temporalidade, como se puxasse o espiritual vacilante sem raiz, como uma transcendência de vaga liberdade que vai se personalizando, geografando-se. Em Volta o avexar para o tempo, assim como o espiritual “fisicalizando” uma espécie de paradoxo.

Teoricamente isso seria mais confuso que a fusão inicial do álbum, mas o foco e a convergência são ainda maiores. A personalização desse céu, desse campo espiritual introduzido numa tal barbaridade de enterrar o firmamento vivo vai decaindo, como a potência radioativa, e vai se expondo. O santo da devoção do Auto “vem trazer sentido ao céu […] o seu concreto para vim ver o abstrato” para trazer o céu real. O realismo é trazido com o manguebeat para mostrar o homem que não olha para cima, que luta contra a sua própria cura, evidenciando um céu transformador, cortando espiritualmente os defeitos humanos.

Chegando no Quinto Ato, no acordar do eu lírico, é preciso cimentar melhor ao leitor e ao ouvinte o quão específico Julhin se torna, mesmo sem se referir a nomes religiosos e medievais de um Auto, apenas riscando fortemente a cultura nordestina e cristã com um lápis 6B de acabamento do seu retrato, da sua iluminura. O manguebeat, o que inspira fortemente o recifense, além da crítica social é o engajamento da natureza do mangue num processo de contracultura ambientalista. O que o artista do Coletivo Candiero faz é um processo dificílimo de ecumenismo musical, religioso e cultural para encontrar o Jesus que o eu lírico tanto quer que volte, que lembra e que verbaliza o céu no pensamento. Na música Passar, numa música com triângulo, com guitarra e uma mistura de serenata com forró noventista que acredita muito na compreensão do ouvinte sobre qual céu foi interpretado.

A verdade é que o Evangelho de Auto do Céu, em sua narrativa teatral e medieval, algo que o Coletivo Candiero parece tanto incentivar para seus artistas compreenderem a lógica de uma diferença entre música cristã e Gospel, e explicar isso ao público; se faz tão teologicamente como musicalmente. Entre a criação divina e a eternidade, entre o pecado e a ressurreição de Cristo, o álbum vai da amplitude de uma teofania incerta de um reza, transcendente, à personalização de um céu no forró, um chamado nordestino para voar de volta a um lar. 

Apesar da estranheza que o single Oração de São Pedro traz ao ser incluído como epílogo do disco, é o livro de Atos dos Apóstolos no estilo Chico Science mais direto, pós Evangelhos delineados por um eu lírico que anseia o céu, ser um pássaro-discípulo e sonha com um firmamento revelado pela filosofia do caranguejo elétrico. A última música é o Auto se tornando Musical sem diferença entre o momento do Ato e o momento da Música. Se não há Jesus nomeado, se não há o Evangelho judaico há o bíblico nordestino, ou algo parecido.

Pedro, o apóstolo mais representativo de tentar ser um Ribaçã e um invejoso da mesma ave, é o final contínuo de quem captou que o céu é o próprio Jesus. Julhin termina um culto que foi em Andrômeda e voltou a Terra sem um pingo de medo de se perder, seguindo no instinto espiritual até uma bênção apostólica, a oração final. “Nele tenho vida eterna” é o grito final com o clássico rock singular que só a Nação Zumbi memorizou, e que só uma música cristã boa consegue fazer.

Aumenta!Oração de São Pedro
Diminui!:
Minha Canção Favorita do ÁlbumBarbaridade

Auto do Céu
Artista: Julhin de Tia Lica
País: Brasil
Lançamento: 31 de agosto de 2020
Gravadora: Coletivo Candiero
Estilo: Nordestino

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