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Crítica | Salto Mortal

O melancólico corpo feminino entre o artificial e o poético.

por Davi Lima
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Nas primeiras cenas de Salto Mortal a diretora Cate Shortland (Síndrome de Berlim, Lore, Viúva Negra) trabalha o corpo feminino melancólico numa conexão entre o artificial e o poético. Esse filme de 2004, primeiro longa-metragem da australiana, enxerga cada tom na fotografia e cada cenário aberto para gravar a jovem protagonista Heidi (Abbie Cornish) num processo de descoberta do que é real e do que é proteção na juventude, após ser expulsa de casa pela mãe. Por isso, pode-se captar ao longo da história, também escrita por Cate no roteiro, conflitos desabrochando sequencialmente: alguns artificiais, como o sexo de uma noite, outros muito poéticos, como a caminhada num dia ensolarado.

Com muita trilha sonora e cores bem enfáticas para compor um sentimento atmosférico da melancolia de Heidi, ela vive entre a infantilidade/inocência e a tragédia/sexualidade. Com muita subjetividade visual, a diretora consegue pelo menos ser didática ao tornar os ambientes e a colorização de roupas como reflexos e conflitos diretos de sentimentos dos personagens que rodeiam a protagonista, já bem caracterizada pelo design de imagem do filme. Se no começo do longa a cor predominante é púrpura, enquanto Heidi vive com sua mãe, o vermelho vai aparecendo entre os homens que vão ocupando o trajeto da personagem principal. Ao longo do filme, a cor púrpura vira azul e o vermelho torna-se mais desbotado, deixando o amarelo aparecer. 

Tudo isso poderia ser uma estilização arbitrária e reforçada superficialmente para promover o drama, como uma poesia forçada pelo movimento tremido da câmera, sem medir significados. No entanto, a diretora vai demonstrando mais controle ao  situar tais cores, e até o desmanche na  tela com borrados, uma dramatização na ausência de realismo, na artificialidade poética. Heidi representa bem esse caráter da diretora, como uma personagem que faz atitudes moralmente questionáveis, definindo uma espécie de camada fina das intenções dela, ao mesmo tempo em que anseia carinho, cuidado, e que atrai o espectador para sua história. 

Numa analogia, Cate trata sua personagem como uma flor num campo espinhoso. Um símbolo poético do corpo feminino que vai quebrando a artificialidade, descobrindo-se a mulher num ambiente de muitos homens. Disso é que surge o drama mais físico do personagem masculino Joe (Sam Worthington), de cabelo e casaco pretos ao lado de Heidi, personagem feminina loira com vestes brancas. E acaba sendo na história desse casal irresponsável, com amor e problemas, uma dicotomia entre o homem aparentemente insensível que não sabe demonstrar o quanto quer ser visto, e a mulher hipersensível, que sobe as escadas como uma criança, que enxerga no sexo banal uma mera expressão da tristeza e da felicidade insegura da  juventude.

Com Cate Shortland, em vez de as cores serem um estudo psicológico mega complexo, elas demonstram parte das conversas australianas banais em um ambiente bucólico. Essa mistura registra o potencial que a diretora enxerga ser capaz de nos contar, de como a transformação e o percurso de Heidi acontece pelo poder que a artificialidade pode alcançar na poesia, e vice-versa, até algo mais prático e tátil nesse movimento que nos narra o filme. A filmografia da diretora é reflexo dessa ideia, por esse desenho de filmes que nos faz questionar o tato da história. Nessa brincadeira dramática entre abstrato e concreto, Salto Mortal traz a melancolia da protagonista ao mostrar seu corpo acariciado e violentado numa ambiguidade de consumo e amor que os homens, no seu caminho, não entendem.

Entre o artificial e o poético há o drama realista de jovens acusados pela imoralidade do corpo, quando na verdade são recebidos pela insensibilidade masculina que confronta toda a atmosfera de hipersensibilidade nas imagens e na história que Cate dirige. Heidi é facilmente julgada como uma menina levada, o que dificulta as propostas mais diretas da diretora em relação ao abuso masculino com a personagem. Entretanto, ela é dificilmente amada, mesmo com tanta sensibilidade que corta a artificialidade da colorização do filme e a poesia que precisa cimentar a triste realidade de uma jovem mulher perdida nos seus sentimentos.

Salto Mortal (Somersault) – 2004, Australia
Direção: Cate Shortland
Roteiro: Cate Shortland
Elenco: Abbie Cornish, Sam Worthington, Lynette Curran, Damian de Montemas, Olivia Pigeot
Duração: 96 minutos

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