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Crítica | Lacuna (2021)

Atmosfera sombria e ecos de Roman Polanski no cinema brasileiro.

por Leonardo Campos
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Um filme que aciona todos os elementos clássicos das narrativas de assombro, mas possui, diferente de muitos exemplares da atual empreitada de terror no cinema brasileiro, traços de autenticidade que o deixa ser além da mera cópia de produtos estrangeiros. Assim é Lacuna, produção lançada com exclusividade pelo serviço de streaming Globoplay, dirigida e escrita por Rodrigo Lages, cineasta que demonstra habilidade com a linguagem cinematográfica ao assumir uma trama que embasada num argumento semelhante ao que já foi contado numerosas vezes em outros filmes, algo que no entanto, é driblado com a sua destreza ao lidar com os bons personagens e o estabelecimento de uma atmosfera sombria, assustadora, em linhas gerais, um acerto no atual cenário de reforço do terror como gênero capaz de fornecer subsídios para o sistema de realização do Brasil, antes limitado no que concerne ao esquema de versatilidade de estilos. Nesta empreitada de 93 minutos, um amontoado de situações numinosas cria um clima de estranheza e revelam que as vidas dos personagens, transtornadas após um acontecimento bastante específico, talvez não volte ao normal nunca mais, numa realidade aterradora.

Vejamos a proposta: Sofia (Lorena Comparato) é a filha de Helena (Kika Kalache), ambas enigmáticas e aparentemente envolvidas numa crise logo na abertura de Lacuna. A jovem telefona insistentemente para falar com a mãe que, distraída na direção de seu carro, acaba deixando o celular cai nos pés do banco do carona e, num deslize infracional de trânsito, acaba envolvida num grave sinistro. Levada para o hospital, Helena ainda pode ter esperanças de sobrevivência, talvez com sequelas, analisadas com o seu despertar de um coma profundo. Sofia agoniza enquanto não tem a certeza da possibilidade de rever a sua mãe normalmente. Ao passo que parece haver um interesse sombrio de se livrar da figura maternal, caso ela tenha graves consequências do acidente, há um desespero na moça, alguém que parece carregar culpa por algo que não sabemos ainda, as tais lacunas do título do filme.

O que será que aconteceu no passado destas duas? Como era a relação dentro de casa? Por quais motivos a filha ligou insistentemente para a mãe na direção do volante e acabou provocando o desastre de trânsito. São muitos os questionamentos, alguns respondidos aos poucos, num preenchimento de lacunas narrativas assertivo, tarefa devidamente realizada por Rodrigo Lages, aqui numa função que esbanja competência, também competente na elaboração de seu texto dramático, um enredo que ressoa, mesmo que sem intenções, Persona, de 1966, uma das obras-primas de Bergman, bem como traços do terror japonês e europeu, postura que o cineasta buscou ao se esquivar dos padrões hollywoodianos para criação de um filme, digamos, mais autêntico. Há, em Lacuna, uma alegoria para o vazio existencial das personagens principais, numa trama ambígua que parece reforçar o terror que habita o interior de cada, isto é, a abordagem psicológica para as coisas que contemplamos externamente no desenrolar da trama.

Tais pontos permitem ao filme alcançar um bom resultado estético, graças ao trabalho eficiente de Daniel Venosa na direção de fotografia e de Cedric Aveline na direção de arte, ambos competentes ao delinear o espaço cênico como um elemento de suma importância para o estabelecimento da atmosfera de assombro em Lacuna. O tom sobrenatural e o clima de terror constante também são reforçados pelo design de som, assumido por Matheus Miguens, um profissional que não se torna refém do jumpscare, mas sabe exatamente a importância de sua contribuição nos momentos em que o áudio pode sobrecarregar uma passagem e torna-la mais inquietante. Outro trunfo também é a interessante composição de Emiliano Mazzenga para a trilha sonora, igualmente eficiente em seu trabalho de estabelecimento do “clima”. Destaque para os desempenhos das atrizes principais e de Dantes (Guilherme Prattes), o interesse amoroso de Sofia, personagem que é pura resiliência e compreensão diante da travessia desta jovem que tem histórico de suicídio na família e precisa lidar com o retorno da mãe do coma, uma mulher que demonstra não ser mais a mesma após a situação de quase morte.

Lacuna — Brasil, 2021
Direção: Rodrigo Lages
Roteiro: Rodrigo Aragão
Elenco: Kika Kalache, Lorena Comparato, Laila Zaid, Guilherme Prattes, Priscila Maria, Charles Fricks
Duração: 91 min.

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