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Crítica | A Sociedade de Preservação dos Kaiju, de John Scalzi

Uma "canção pop" para uma fuga rápida.

por Luiz Santiago
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A história da escrita de The Kaiju Preservation Society tem tudo a ver com o momento que o próprio livro explora como ponto de partida para a colocação do personagem Jamie Gray em contato com a KPS, Sociedade não-governamental que tem por missão estudar e salvar gigantescos e estranhos animais. John Scalzi estava com outro romance na agulha, uma trama bastante densa que a eclosão da pandemia de COVID-19 basicamente o impediu de escrever por motivos que foram de percepção da realidade e situação emocional do autor, até questões de saúde física. Mas foi justamente por conta de todas essas coisas que levaram o escritor à desistência de uma nova obra, que veio a premissa de A Sociedade de Preservação dos Kaiju, uma aventura despreocupada, simples e divertida que tinha mais lugar naquele recorte específico do mundo contemporâneo, segundo o autor, do que um tipo de romance pesado que ele poderia conceber.

E numa coisa ele está certo: o livro é mesmo muito divertido e profundamente relacionável com qualquer tipo de leitor. Aliás, a literatura de Scalzi tem como princípio essa preocupação de ao menos em um de seus blocos ou personagens fazer uma conexão direta, nada sutil e muitas vezes engajada em questões que fazem parte do dia a dia das pessoas no mundo real, um risco que ele assume e que acaba sempre funcionando positivamente para a fixação de sua premissa na mente do público e na aceitação de algumas coisas que, de outro modo, demoraria muito mais tempo. No capítulo de abertura, conhecemos Jamie Gray, que está indo para o seu feedback empresarial após seis meses de trabalho em uma empresa de delivery de comida chefiada por Rob Sanders. A reunião, porém, não sai como previsto, e Jamie se vê desempregado em pleno início de pandemia. Na verdade, desempregado não: saindo de um posto oficial da equipe de marketing de dentro da empresa para se tornar um entregador.

É impossível não abraçar as questões apresentadas por Scalzi nesse início dessa obra. A forte humanidade e realidade do contexto social de seus personagens mais o humor muitíssimo bem dosado que ele usa para nos apresentar tudo isso são coisas que atravessam o livro, nunca deixando que a obra se torne chata. E pasmem, existe uma boa quantidade de exposição em muitas sequências e cenas em que os diálogos no estilo ping-pong se estendem por um bom tempo; mesmo assim, a gente aproveita com gosto o que está sendo narrado, pois isto é feito com o devido cuidado para que o enredo não caia em uma situação repetitiva. É num desses longos diálogos que Jamie encontra um antigo conhecido da faculdade e acaba sendo convidado para uma entrevista de emprego em “uma instituição que lida com animais de grande porte“. É assim que a KPS é apresentada para Jamie, e este é o tipo de apresentação que nos faz rir, porque a gente conhece o título do livro e sabemos do que se trata, enquanto o protagonista não faz ideia do que signifique a denominação “animais de grande porte“.

SPOILERS!

O autor não perde muito tempo dissecando elementos científicos em torno da passagem da nossa Terra para a Terra paralela onde toda a trama se passa. Para alguns leitores isso pode não fazer muita diferença, mas para mim faz. Não é como se tratasse de algo absurdamente simples, corriqueiro e que não merece muita atenção. Mas o fato é que o conhecimento e a habilidade de passar de uma Terra para outra através de um portal na Groenlândia são dados consumados e não há nenhum parágrafo que explique isso, nem como breve contexto. É fácil, dentro do encadeamento dramático do livro, aceitar esse tipo de escolha do autor? Sim, é fácil. Scalzi faz com que a gente se preocupe com outras coisas, foque em situações aparentemente mais graves ou urgentes e direcione as nossas perguntas para os bichos ou para a constituição desse novo planeta — e não para a questão científica de passagem, que é rápida demais e simples demais: um portal “comum e civilizado” que rapidamente leva as pessoas de um lugar para outro.

Depois da ótima apresentação, o autor nos faz conhecer muitos detalhes sobre o trabalho dessa Sociedade de Preservação dos Kaiju. E as referências pululam por todos os lados, não só em relação ao Universo dos kaijus, ao filme Godzilla e afins, mas a diversos outros ícones da cultura pop, inclusive à saga Crepúsculo! Esse é o ponto do livro onde o autor resolve trazer questões científicas, físicas, químicas, botânicas, arqueológicas e por aí vai. E por um bom número de páginas a gente não entende direito qual é a intenção do autor nessa segunda parte. O livro deixa de ser divertido em algum momento? Não. Diálogos e situações, mesmo nas partes mais paradas da obra, são ótimos, sem contar que tem personagens muito simpáticos e algumas características nas relações que prendem a gente facilmente. Mas os exercícios, as descobertas, a trama com os turistas, tudo isso parece se estender demais e parece preparar algo que até mesmo o leitor mais ‘avoado‘ consegue prever com pelo menos uns quatro capítulos de antecedência.

Esse ponto do texto me lembrou a fórmula cansada de Arachnids in the UK e de mais um montão de narrativas similares com o “milionário vilão“. Não, ninguém aqui vai defender milionário, muito pelo contrário. Mas na ficção, isso já tem se tornado uma moeda de troca fácil (dificilmente bem empregada) na construção de um antagonista para o drama: a ganância de um grande homem de negócios, que só pensa no lucro e que só pensa em transformar as coisas em dinheiro, independente da vida de outras pessoas ou da espécie que está em contato, é a problemática que leva ao clímax. É uma premissa batida que, por mais encaixe que tenha nesse mundo, parece integrar uma fórmula cansada, sem contar que a gente vê chegando muito, muito tempo antes. Além disso, a escrita da parte final, envolvendo o tal ricaço inescrupuloso, tem momentos pouco inspirados, salvando-se apenas pelas intervenções da equipe da KPS, especialmente na exposição final por parte do vilão.

O tom de esperança e a cara típica dos finais felizes em livros com tramas de proporções épicas são coisas propositalmente colocadas pelo autor aqui, como ele mesmo deixa claro no posfácio. E o contexto da pandemia somado à intenção de escrita deste livro “especialmente para este tempo“; uma obra que dê a impressão de ser uma “canção pop“, fácil de consumir e capaz de aquecer o coração, justificam tais escolhas. Ao fim de KPS, o leitor está sorrindo, vendo um ciclo de trabalho acontecer e se perguntando como essa história toda irá continuar (até o momento, trata-se de um livro solo, sem nenhuma intenção de ser transformado em série literária).

O fechamento volta a falar das coisas relacionadas à pandemia, fala da vacina, volta a falar das eleições nos EUA (eu apoio todas as críticas que o autor faz direta ou indiretamente a Trump, mas em muitos momentos essas alfinetadas foram forçadas na história, deixando alguns momentos simplesmente cringe, como diriam os jovens de hoje) e das condições de trabalho num momento de “uberização” do capital. Nesse ponto, o autor está seguindo a lógica que adotou no livro e, no recorte específico deste trabalho, faz uma boa leitura social, que acaba se encaixando muito bem à dinâmica de contratação de novos membros para a Sociedade. Um livro de leitura rápida, cheio de momentos intensos, fugas, perseguições, hilários diálogos e de fantásticas cenas com monstros, que são a joia da coroa. Uma fuga gostosa para consumo despreocupado e engajado em tempos difíceis.

A Sociedade de Preservação dos Kaiju (The Kaiju Preservation Society) — EUA, 15 de março de 2022
Autor: John Scalzi
Editora: Tor Books (edição lida para esta crítica: Kindle)
268 páginas

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