Aqui temos duas críticas de dois contos de Machado de Assis que ele escreveu para Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em tempos bem distintos no Brasil. O Caso da Vara perpassa os momentos de transição republicana, enquanto Noite de Almirante faz parte de uma fase em que o autor brasileiro procura ensinar o leitor a ler uma nova fase literária realista em meio ao imaginário romântico. Ambos os contos são publicados atualmente no livro A Cartomante e Outros Contos, reunindo outros textos como: A Causa Secreta, Pai Contra Mãe, O Enfermeiro, Conto de Escola, Umas Férias, Um Apólogo, O Espelho, Missa do Galo, A Igreja do Diabo e A Cartomante.
O Caso da Vara
Nesse conto de sete atos chamado O Caso da Vara, Machado de Assis persiste em abordar a escravidão no Brasil após a chegada da República em 1889 e após a abolição da escravatura com a Lei Áurea, em 1888. A conclusão pesarosa sobre o sacrifício (anticlimático) de um seminarista chamado Damião, oferecendo a vara à Sinhá Rita para bater na pequena negra chamada Lucrécia, cria da senhora, busca contatos com as narrativas que o país realmente exibia nos jornais, reflexo de transição política da nação. O religioso Damião, que buscava sair do seminário; a Sinhá que parecia ter um carinho especial pelo padrinho dele, chamado João Carneiro; e o pai furioso formam a triangulação da história, mas a real finalização dela não pertence a esses personagens.
A divisão de sete momentos se torna importante para o conto na medida em que nos ensina a compreender como Machado não apenas cria um suspense com aspectos cômicos, como delimita os focos em suas metáforas, como representações realistas demais que vão escondendo um teatro. Dividir esse escrito em partes pontua melhor as elipses que vão interrompendo a narrativa de Damião e provocam novos percursos, assim como sinaliza as justificativas de transição do texto. Mauricio de Santos Gomes, mestre em literatura, em seu artigo O Caso da Vara: farsa e tragédia no alvorecer da República, fortalece cinco atos do conto com interpretações de cenários e interpretação de uma moral machadiana, acumulada e cerrada na reflexão de Damião acerca do entregar a vara. No entanto, pensando no realismo de Machado, focado nas ações e descrições, O Caso da Vara pode ser dividido também em sete, baseado em nomes e verbos que aumentam o escopo externo da história de Lucrécia.
As paradas na história do seminarista, no quesito do tempo de leitura e no foco temático, acontecem no prólogo, explicando o caso de Damião (1); parando na ação de referência “Tal foi a entrada“, que inicia outro ato que fará lembrar de Sinhá para ajudá-lo no seu problema (2). A parada seguinte é em apresentar a idade e quem era a senhora, que havia entrado na história e estacionado o protagonista em sua casa (3). Na sequência, a chegada de João Carneiro desestabiliza o ambiente de Sinhá com Damião envolto de Lucrécia (4), e as outras pausas são a tarde de Damião com as moças – incluindo a pequena negra – e Sinhá (5), sendo interrompido pelo escravo do pai do seminarista (6), e por fim, o momento em que Sinhá pega Lucrécia no flagra, pois não tinha feito a tarefa (7). O anticlímax é forjado pela forma que o caminho narrativo é desenhado.
A leitura fica com lombadas, mas o efeito é preservado. A comédia nas respostas de Sinhá, ou reações de Damião, vão seguindo essa perspectiva num modelo de suspense clássico de Machado, direcionado a história de Lucrécia. Maurício incrementa em seu artigo os fatores históricos relacionados à história de outra Lucrécia, em Roma, na transição da Monarquia para a República e a data 1850 com as moderações inglesas nessa década contra o tráfico de escravizados. Mas o próprio triângulo de personagens entre João, Damião e Sinhá refletem as personas do conflito histórico. Durante o Segundo Reinado a perda do Padroado já havia virado piada na mão de Machado no conto Adão e Eva, e um seminarista fujão, para não se tornar padre, segue uma linha semelhante. A senhora Sinhá aceita defender Damião por ser lembrada do esposo e João tem medo/carinho dela/por ela. Em meio a isso ambos contrariam o pai do fujão, que envia o escravizado com uma carta antes da vara machucar Lucrécia. Nessa associação de personagens e ações nesses sete atos, o Império sem Padroado, que promulgou a Lei Áurea, transformou-se em uma República positivista.
Machado cutuca a onça com vara curta ao mostrar que o novo não é tão moderno em ideologia quando afligem suas motivações estatais. A abolição da escravatura de fato modificou a sociedade, ou foram alterações econômicas que esconderam o racismo? O título do artigo do mestre Maurício é bem indicativo quanto a isso, sobre essa tal farsa e tragédia. Apesar disso, é ainda mais assertivo entender como O Caso da Vara remonta a realidade presente com realismo e desilusão, mesmo tão distante do universo de 1850 do conto, quanto de 1891, em que o conto foi publicado na Gazeta. A vara ainda existe e é usada quando alguns querem preservar suas seguranças contra os discursos que defendem apadrinhamentos políticos.
Páginas Recolhidas (Brasil, 1899)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1891.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas
Noite de Almirante
Em um período “neutro” entre fatos históricos, antes da Lei Áurea e da transição do Reinado para a República, o conto Noite de Almirante recorre aos preceitos realistas de Machado para desiludir os românticos como motivação narrativa. Não há mesquinhez no texto, pelo contrário, o narrador sempre busca sensibilizar os momentos esperançosos e desesperançosos do protagonista Deolindo com Genoveva. Mas a desilusão se torna mais pungente quando o escritor faz uma análise detalhada dos seus personagens ao ponto de sobrar romances e pensamentos mentais sinceros em confluência. O mais externo na construção da narrativa é o tema da profissão de marujo, que pertence a Deolindo. Nisso, o conto concatena o seu universo realista com as imaginações atreladas às viagens de navios, desarticulando o romance pelas suas próprias bases.
Como acontece em A Causa Secreta, o autor brasileiro delineia um imaginário romântico dos leitores dos jornais como um gancho perspicaz a fim de trazê-los para sua história à la Tchekhov. O escritor russo tinha um estilo que arrumava desilusões no percorrer dos seus contos, promovendo algo semelhante à metáfora do marujo posto no conto de Machado: “como um homem ‘que vai do meio caminho para terra'”. Essa frase representava a tristeza de Deolindo ao compreender que sua jura de amor alinhada com sua promessa de viajar pelo mar não tinha valido nada que não fosse as palavras de uma mulher que não tinha cumprido a palavra, mesmo dizendo que era verdade. Como ela diz: “…Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.”
A cada momento que Deolindo passava com Genoveva em sua casa, surgiam encontros e desencontros com a possibilidade dos dois reatarem o romance. A leitura se baseia nesse vai e vem previsto na mente do marujo, em que sua profissão, no imaginário popular, carrega os preceitos românticos das aventuras e promessas. A descrição do narrador de suas expressões e pensamentos na conversa com sua ex-amante expurgam num mar realista um efeito no leitor que se vê banhado num espiral de descrenças sanfonadas em relação ao objetivo do marinheiro retornar à terra para encontrar seu amor. Não há apenas a quebra de expectativa da mulher estar com um mascate, como o camponês, o que fica na terra e nada promete.
Por isso, a promessa “Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte” é quebrada, pois não é apenas um romance desistido, e sim um imaginário de marujos deposto. Assim como Genoveva se mostra alegre e tranquila quanto a desfeita com Deolindo, ainda assim se encanta com suas histórias nos mares, pois em suma é sua profissão que ainda encanta, não a ilusão fantasiosa associada a seu trabalho que tudo ele conquista quando retorna das aventuras nos oceanos. Da mesma forma, o protagonista diz que vai se matar, mudando o discurso de vingança com o mascate que a mulher estava namorando. Mas ele nem mata o outro e nem se mata, o que torna o título festivo da noite de almirante mais um evento realista que uma ficção masculina recapitulada por eras românticas.
Histórias Sem Data (Brasil, 1884)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1884.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas